segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Da arte intersubjetiva à intercorporeidade









Uma arte concreta não é uma arte feliz. É preciso manter a percepção perto da experiência, sem, no entanto, limitar-se ao empírico. Restituir cada experiência do ser e da natureza do ente, com o que foi e está marcado de anteriormente.

Essa percepção deve buscar a cifra anterior à atividade reflexiva. Logos do mundo estético, do mundo sensível, da imagem, deve ser unidade indivisa do corpo e das coisas. Unidade que desconhece ruptura entre sujeito e objeto.

A arte contemporânea deve criticar a produção estruturada numa filosofia subjetivista e numa ciência objetivista. Deve se desmembrar dessa visão humanista rasa .

Porque na filosofia subjetivista, o sujeito se apropria da realidade exterior. É cognoscente a ela, objetivando sua realidade criada na idéia (representação de, como quis Schopenhauer em O Mundo Como Vontade e Representação). O sujeito é heterogêneo à realidade de si, criada pela idéia em representação de suas necessidades para organização própria da vida em grupo.

E também porque a ciência objetivista outorga ao cognoscente o poder de recriar a relação da realidade com o próprio sujeito reduzindo essa realidade à fugalidade, numa guerra de conceitos prisionais e modeladores, primando por uma inconsciente infelicidade disfarçada de aparente satisfação.

Aqui reencontramos o velho tecnicismo liberal pós-Terceira Revolução Industrial. Está ai, permanente na construção cultural pós-moderna. É essa percepção que permeia a lógica cultural do sistema capitalista hoje (para um maior aprofundamento do assunto, indico Fredric Jameson em Pós-modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio).

Schopenhauer trata dessa questão em relação à construção do amor no sujeito em função de uma sentimentalidade não construída da racionalidade, mas sim já presente nas raízes do seres como necessidade fisiológica de reprodução somada à necessidade de afeto e atenção. Trata ontologicamente o termo amor (e toda sua carga filosófica).

Subjetivismo e objetivismo, idealismo e empirismo, metafísica e positivismo, são dicotomias que preservam a mesma fonte: a separação do sujeito do objeto, considerados como realidades heterogêneas, distintas, e que se apropriam de gêneros e bens. Tendem a reduzir seu oposto a uma aparência ilusória. Essas dicotomias são, portanto, as faces complementares de um engano comum e originário. A desagregação dos modos distintos desses modelos figurará a construção de uma imagem fetiche por fugaz.

E num é que essa separação é a origem das ciências e filosofias modernas. A dicotomia tudo é consciência ou tudo é objeto, reduz os acontecimentos objetivos para aquém do entendimento dos fenômenos, e não é essa a percepção necessária à arte contemporânea.

Essa relação da filosofia subjetivista, modulada com essa ciência objetivista, é o que Merleau-Ponty chama em seu livro Fenomenologia da Percepção de “pensamento de sobrevôo”.

Sua filosofia contemporânea se preocupa com a fusão dessas dicotomias: sujeito-objeto, fato-essência, ser-consciência, realidade-aparência, que já carregam em si, interpretações da realidade: experiência e sentido. E para fundamentar a relação experiência-sentido, busca pela natureza do ser.

Para esse objeto, corpo e mundo são unos, um “campo de presença” onde carregam todas as relações da vida perceptiva e do mundo sensível. O corpo guarda em si a essência da transcendência dentro de uma caixa ontológica, material, que através da empiricização do homem no mundo e do homem no homem, mantém as relações diretas do externo (mundo visual, da imagem, da representação) com a percepção e absroção desse externo pelo ente, relação de troca de energia provada, já lá na física moderna, que existe produzida pelos movimentos primitivos circulares dos átomos e dos astros. Essa percepção fenomenológica acrescenta a essa relação os movimentos primitivos dos fatos, das idéias, dos sentimentos.

Esteticamente falando, é o logos do mundo estético que torna possível essa intersubjetividade como intercorporeidade, que através da manifestação corporal na linguagem e da manifestação não conceitual da desfiguração, permite o surgimento do logos cultural
[1], do mundo humano da cultura e da história. É a beleza do ser a partir do ser-em-si, do ser-no-mundo, por si no todo.

O corpo, nessa relação, produz, de forma centrípeta (pois é o sujeito que sai da idéia e não a idéia que sai do sujeito) uma necessidade fisiológica de agradabilidade dentro de um parâmetro de vontade de representar sua necessidade, uma construção da imagem da realidade desejada.

A arte por si só, em seu conjunto, numa cíclica histórica de construção pessoal da história da própria arte, consiste em fazer com que os objetos estejam presentes sobre a condição expressa de não estarem lá. É como funciona hoje com a pintura ou com a fotografia. Querem transcender a materialidade pela experiencialização, sem a qual não existiriam, porque rumariam para um sentido sem o qual não seriam pintura ou imagem.

Essa percepção relacional da fenomenologia nos retorna à análise do selvagem, a partir das novas necessidades presentes na caixa modelar contemporânea. Volta ao ser, antes da ciência e da filosofia.


É uma percepção que se expõe em si própria – por ser nós e nossa – sem pretensões daqueles sistemas conceituais que fecham relações dicotômicas num círculo determinado de pressupostos e absolutos. É apresentação própria, sem compromisso de desconstrução do anterior, com conseqüente compromisso de interconexão com o ulterior.







[1] Não sendo a linguagem sua essência e obra perfeita. Pelo contrário. Por isso precisa de complementaridade, como o é a arte, por exemplo.




.