quinta-feira, 24 de abril de 2025

O FUTURO É ANCESTRAL

COMO ESSA REFLEXÃO PODE PROPORCIONAR À EDUCAÇÃO ESCOLAR CONVENCIONAL INSTITUCIONAL DA ATUALIDADE UMA PROPOSTA DE UMA ESCOLA TRANSFORMADORA NA SOCIEDADE COMO UM TODO, PRA ALÉM DO CAPITALISMO

A escola pública convencional, como a conhecemos hoje, começa a se moldar a partir da segunda metade do século XVIII, com a revolução industrial inglesa, inicialmente, promovida com a riqueza roubada da África, Ásia e América e acumulada pelos europeus nos movimentos da expansão marítima mercantilista. Ok. A escola nasce, então, da demanda de um capitalismo que surgia. Nesse trajeto até aqui, a educação institucional escolar convencional se moldou como máquina de formar proletário, como jogos de poder e ego político, como mercadoria meritocrática e como joguete tecnológico - não necessariamente nessa ordem e não necessariamente um molde substituindo o outro, mas, muitas vezes, com todos eles convivendo juntos.

E apesar dos esforços e gastos homéricos com essa escola convencionalizada, cada vez mais percebemos como ela não está mais dando conta das reais demandas sócio-culturais contemporâneas. É só entrar em uma e acompanhar por um tempo o trabalho nela desenvolvido. Tudo funciona para 10% dos estudantes que estão lá dentro. Aos outros 90%, no meio do faz de conta neoliberal, vamos levando, “passando” nas provas institucionalizadas e generalizadas, seguindo forçados a acreditar que uma formação, mesmo que precária, é melhor do que nenhuma. E isso tem sido uma baita armadilha.

Já se disse que uma formação precária nos leva a pensar que sabemos o que não sabemos, que o que aprendemos fora da escola é “inferior”, que somos capazes de fazer o que não somos, e desmerece o que realmente somos capazes de fazer. 

A escola se submete a enormes pressões para se conformar aos paradigmas da globalização e da lógica da sociedade neoliberal e aí continua sendo espinha dorsal da manutenção de um sistema extremamente opressor, disfarçada de promotora da liberdade social.

Pra aliviar isso, nós, professores, nos dedicamos exaustivamente à competição por uma boa classificação nos índices de desenvolvimento. Oferecemos ao mercado e ao sistema de ensino as “melhores” mercadorias educacionais - estudantes formados -, o que, por sua vez, vai lhes “garantir” melhores condições de vida, de emprego e de ocupação profissional.

Mas você sabe, né, que só uma em cada 10 crianças continua o ensino médio, e/ou consegue acesso à formação técnica e/ou outros níveis de estudo, isso quando não precisa abandonar a escola pra trabalhar pra comer, criar es filhes ou ajudar a família.

Algo nessa conta não fecha, né?

Em 1960, as ligas camponesas, movimentos quilombolas e dos povos indígenas já denunciavam essa situação, seguides por diverses pensador@s da educação, que localizavam a crise crônica em que vivia escola. Nos debates entre famílias, estudantes, educadores, políticos e opinião pública nos idos de 1960, praticamente tinha-se por consenso colocar essa escola em estágio de “morte clínica”.

Mas ela ressuscitou.

Após o período da redemocratização e da LDB de 1996, inegáveis transformações ocorreram, como melhorias e ampliação dos currículos; reestruturação e ampliação do número de escolas; acesso democrático à escola garantido a todos; investimento em tecnologia; e, a partir dos anos 2000, abertura de diversas ETEs, Institutos Federais e campis universitários pelo interior; programas políticos de reparação histórica como o Reuni, o Prouni, o sistema de cotas, revisão da LDB, criação de escolas indígenas, entre tantas outras.

Que bom. O básico parecia estar sendo finalmente ofertado com qualidade.  

Tais transformações são inegáveis sim, e devemos celebrá-las e defendê-las sim, porque são o respiro que nos mantém minimamente sãos para discutirmos transformações mais profundas do que estas, até porque, no geral (e quem dentro da escola sabe), o modus operandi epistemológico e ontológico escolar infelizmente ainda permanece parecido, porque, no fundo, ela continua reproduzindo o modelo de sua fundação.

Nesse aspecto, pouco tem transformado a realidade social das periferias, considerando o modelo da formação que conseguimos oferecer, apesar dos grandes e exaustivos esforços.

A maioria des estudantes e professor@s da escola pública não se identifica mais com a escola... porque não “aprendem”, porque não conseguem “ensinar”, porque “aprendem” e “ensinam”, mas não se sentem realizados com os “resultados”.

Há um estranhamento dos agentes sociais, uma dissociação entre escola e comunidade, entre teoria e prática, entre real demanda e soluções apresentadas. Há uma crise de reconhecimento e representatividade, um inchaço organizacional.

Enfim, trata-se de um problema estrutural e isso tem feito com que sentidos e significados tenham se perdido no processo pedagógico, esvaziando nossas ações e o alcance de objetivos comuns.

Sim; nós, professores e estudantes, estamos pedindo socorro. E faz tempo.

Atentos a esses problemas, dezenas de países legalizaram a chamada educação domiciliar (homeschooling) nos últimos 40 anos, em alguns casos até exigindo avaliação anual des estudantes. Homeschooling significa “ensino em casa”. Ou seja: a transferência dos conteúdos disciplinares da escola para o domicílio, sistematizados pelos pais ou tutores, ao seu bel prazer e intencionalidades. Uma casinha de reacionarismos e isolacionismo.

Mas, nesse mesmo período, alguns educadores falaram também de outra coisa: de uma tal de desescolarização (unschooling), que é completamente diferente de ensino domiciliar. 

Desescolarizar, para esses educadores, não significa acabar com a escola ou trocar a escola pelo lar, mas significa usar o equipamento social e cultural escola em favor da comunidade.

Vou explicar.

A desescolarização está associada à publicação dos livros Deschooling Society, de Ivan Illich, e The School is Dead, de Everett Reimer, em 1971, cuja CRÍTICA FOCA A ESCOLA ENQUANTO INSTITUIÇÃO CONVENCIONAL DE PODER E CONTROLE CAPITALÍSTICO NA SOCIEDADE (assim como fazia Foucault na mesma época lá na França).  

Ainda em 1961 e 1964 respectivamente, How Children Fail e How Children Learn, de John Holt já davam previsões desse debate.

Paulo Freire, em sua origem, lá na década de 1960, debateu e defendeu essa ideia também (de onde você acha que surgiu a reflexão apresentada em Pedagogia do Oprimido e a lógica dos Círculos de Cultura?).

Em 1977, Holt cunha o termo unschooling na revista Growing Without Schooling e, seguido por Freire, Illich e Reimer, publicam sobre o assunto no Centro Intercultural de Documentación (CIDOC), em Cuernavaca, no México 

Presta atenção:

as posições mais radicais da chamada desescolarização são conhecidas por seus projetos de desinstitucionalização, sim. Mas o próprio Illich deixou explícito em seu primeiro livro que “o objetivo do debate é ressignificar o ethos da escola, e não propriamente acabar com as instituições” (ILLICH, 1973, p.14).

Sim, pra ele, desinstitucionalizar não significa necessariamente acabar com as instituições, mas sim, dar outra função social e cultural pra elas, pulverizando a lógica da generalização institucional, transpassando a lógica do macrossocial pro microssocial, alterando assim a função estrutural da instituição.

Se defende aqui, por tanto, uma MUDANÇA NO MODUS OPERANDI DAS INSTITUIÇÕES, na alma e estrutura de funcionamento da escola, para que e para quem ela serve.

Logo, não se trata de acabar com a escola. E não se debate só escola, mas hospitalização e cárcere também (exatamente como tava fazendo Foucault na mesma época lá pela França).

Trazendo pros dias de hoje, acredito que o objetivo do termo “desescolar” era lacrar: radicalizar o conceito e chamar atenção à urgência do debate.

Mas acredito também que uma mudança no ethos escolar, nesses termos, geraria uma perspectiva de comunidade de aprendizagem, e, sim, poderia ser uma mudança tão radical nessa perspectiva, tão profunda, que refundaria as instituições escolares, transformando-as em outra coisa, talvez mais próxima das perspectivas educativas quilombolas, dos povos originários e anarquistas de bases comunitárias, por exemplo.

Outra coisa importante aqui:

percebe como desescolarização não tem absolutamente nada a ver com a extrema-direita? Não tem. Trata-se de uma lógica de pensar e estruturar a função social e cultural da escola numa perspectiva microssocial comunitária, lógica que já é construída pelos povos originários e quilombolas há séculos.

Mas sim, é um discurso que pode, sim, muito bem, ser usado pela extrema-direta, se não for compreendido e debatido. 

E foi, né? E vem sendo.

É uma batalha acirrada. 

O Estado se omite em debater profundamente a questão, abrindo margem, inclusive, para interpretações bizarras e grotescas sobre o tema, como as apresentadas pelos governos de extrema-direta que se apropriam superficialmente das discussões e exalam fakenews por aí, confundindo tudo, como aconteceu com o governo bolsonarista ou como vem acontecendo com o governo de Milei (que se auto intitula anarco-capitalista.. olhe, vou nem entrar no mérito desse conceito, sinceramente).

É um tema delicado porque a escola pública teve seu potencial resgatado no processo de redemocratização do Brasil, depois que uma ditadura empresarial-militar violentíssima, que acabou com praticamente qualquer possibilidade de envolvimento comunitário entre escola e sociedade e trouxe pra escola uma lógica puramente tecnicista e irreflexiva.

Por que isso?

Porque é na relação entre escola e comunidade que o bicho pega. 

A escola servindo como ferramenta de autonomia e poder para a comunidade, onde as pessoas se sintam participantes e construtoras da sua própria história, de forma autônoma e potente, significante e pertencente, reduzindo-se a distância entre teoria e realidade, mais próximos das lógicas educativas das comunidades indígenas, quilombolas e anarquistas, buscando nos perceber parte de um todo, redefinindo o sentido da vida...

..em contraposição ao que é difundido em nossa sociedade ocidentalizada e urbanizada, que se estrutura na lógica exploratória, competitiva e do prazer dopamínico do bem-estar disfarçado de cuidado...

Imagina o perigo dessa liberdade?

A escola, pública, gratuita e de qualidade é um dever do Estado e um direito de toda e qualquer pessoa, independente de quem seja, independente de credo ou raça ou de onde venha e defendo que assim permaneça porque, querendo ou não, essa é uma conquista prática, embora nossa utopia esteja muito longe disso ainda.

Pode não ser possível pensar uma sociedade sem escolas, mas, como educador, não posso concordar com o jeito que ela vem funcionando ou me satisfazer com as microrrevoluções que ela tem projetado.

A periferia merece mais. As comunidades precisam tomar as escolas, com projetos, planos e responsabilidade social.

A desescolarização é um tema complexo, porque pensar num processo de ressignificação do ethos escolar subentende repensar toda a lógica estrutural e funcional da escola, fundamentalmente no que tange à esfera da socialização e da guarda das crianças enquanto es adultes trabalham.

Tem estudante que vai pra escola só pra comer, porque não tem comida em casa. Tem estudante que prefere estar na escola, seja ela como for, porque não aguenta mais os abusos das pessoas ao seu redor em casa - só pra citar duas situações complexas dentre as centenas que existem.

Isso tudo torna o debate ainda mais complexo, porque pensar uma ressignificação de um ethos escolar, é pensar conjuntamente numa reestruturação social comunitária, que funcione na perspectiva do senso de comunidade envolvida entre si e com a terra, onde todes façam parte da escola, onde comunidade e escola estejam tão emaranhadas que uma sustente a outra organicamente.

“Uma sociedade que tranca suas crianças em creches e seus velhos em asilos não pode dar certo”, já dizia Nego Bispo.

Mas pra sociedade capitalista não colapsar, as escolas precisam continuar como estão, funcionais em sua mesma estrutura básica, em sua arquetipia. Por isso nada muda substancialmente. A gente só se adapta. E enquanto o capitalismo continuar conseguindo se retroalimentar da sua própria desgraça, assim será.

Aí, o que fazer pra não capitularmos? Docentes, gestores, profissionais da educação, famílias, crianças, jovens...?

Meu sentimento (e entendimento) é que a resposta está na ancestralidade.

Sim. Pode até parecer clichê hoje em dia, em como está na moda falar isso, mas, o modelo possível disso tudo já é o modelo ancestral de educação comunitária. É só olhar pras práticas educativas dos povos indígenas e quilombolas.

Uma perspectiva de comunidade de aprendizagem, dependendo de como for tecida, abraçaria grande parte da nossa demanda social comunitária e daria um viés revolucionário e transformador real para as escolas, nos termos de um pleno envolvimento social - em contraposição a um des-envolvimento, como dizia Nego Bispo.

Mas o que seria uma comunidade de aprendizagem?

Seria as escolas se transformando em grandes centros de aprendizagens coletivas, científicas e populares, passando por uma reformulação profunda da sua lógica de funcionamento e estrutura, gerando educação viva e formação integral real, sem se tornarem reféns dos modos e procedimentos propostos pelo sistema oficial de educação somente, mas se utilizando deles em favor das demandas específicas da comunidade, aderindo abertamente às lógicas de envolvimento social dos povos originários e quilombolas, funcionando junto, focando nas demandas reais e fundamentais comunitárias, proporcionando senso de pertencimento a todes es envolvidos nesse processo.

A cultura escolar passaria por um processo de transformação ontológico, através de uma profunda reconstrução de consciência histórica, dada a possibilidade da compreensão e inserção de culturas históricas não hegemônicas ressignificadas, anulando epistemicídios, genocídios, misoginia, racismo, implodindo o patriarcado e o capitalismo por dentro, a partir da sua própria estrutura, nos ensinando a ser outra coisa que ainda não sabemos ser, mas que pra sabermos como será, precisamos começar.

Diz-se que Exu já dizia: dá o passo, que dou o caminho.

Isso é filosifa ancestral.

Os povos indígenas e quilombolas têm os caminhos. Precisamos olhar pra eles como nossos mestres e nossos orientadores nesse processo de refundação educacional e social.

Com coragem de arriscar mudanças. Porque, se não, tudo vai sempre ser mais do mesmo na escola, não importa quanta tecnologia se insira, não importa quantas alterações metodológicas se faça. Enquanto a escola não mudar em sua estrutura arquetípica, epistêmica, ontológica, nada vai mudar de fato e vamos continuar reproduzindo o status quo.

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