A proposta deste texto é elucidar alguns pontos sobre a diferença entre desescolarização
e homeschooling, e refletir
rapidamente sobre a proposta do governo Bolsonaro sobre esse tema.
Nos últimos dias vimos ventilar algumas notícias sobre o governo Bolsonaro
ser “a favor” da “desescolarização”. Segundo o Le Monde Diplomatique, a notícia é que, sob a justificativa de
garantir amparo legal às famílias adeptas à prática do ensino domiciliar, também
conhecida como homeschooling, o
governo Bolsonaro propôs uma medida provisória que busca legislar essa modalidade
de “ensino”. E embora ignore quatro projetos anteriores sobre o assunto e que já
tramitam no congresso há alguns anos, a proposta do governo é amparar os
interesses específicos de famílias adeptas aos princípios cristãos do protestantismo
e do evangelicalismo.
Mas, calma! Tem muita coisa para ser discutida aqui sobre esse assunto.
Primeiro que esse não é um assunto novo, embora pareça. A conversa sobre
desescolarização da sociedade começa lá nos anos 1950, no México e nos EUA, depois
toma diferentes formas, podendo ser uma delas o homeschooling, ainda nos anos 1970. No Brasil, a forma do homeschooling toma prática nos anos
1980, e com mais força na década de 1990. Então, atenção: o homeschooling surgiu do debate acerca da
necessidade de um processo de desescolarização, então não são a mesma coisa.
O que é concordância, tanto para a desescolarização, como para o homeschooling, é que, na maioria das sociedades,
as escolas não estão mais dando conta das novas demandas da nossa sociedade, seja
pela forma como estão construídas, montadas e organizadas, seja pela cultura
escolar que tomou a forma do conteudismo e da competição como principais norteadores
de uma prática educativa eficiente. Mas há muito mais diferenças do que
semelhanças entre a desescolarização e o homeschooling.
Na prática, o que se tem observado é que o homeschooling geralmente se processa como uma “transferência” dos
conteúdos da escola para casa. Junto com eles, associam-se outros conteúdos
específicos escolhidos pelas famílias, assim como seus princípios morais e
éticos, geralmente religiosos. Então se tira a criança da escola e se “leva” a “escola
reformada” para dentro de casa. Inclusive, diversas empresas já estão habilitadas
a construir softwares e livros específicos
para essa lida doméstica.
A desescolarização pode também abarcar um processo de ensino domiciliar dentro
de si, mas de outra forma, porque é outra coisa. A desescolarização é uma ideia
de promover a diversidade e reconhecer alteridades. Não prima por uma ética ou
moral específica religiosa, nem se enquadra num processo político “de direita”
ou “de esquerda”. A desescolarização é uma busca de desconstrução e ressignificação
da forma como se “transmitem” e se constroem os conhecimentos nas pessoas, inclusive
dentro da própria escola. Quando nos referimos à desescolarização, estamos nos referindo
à reflexão e à desconstrução do espírito motivador das ideias e costumes da
cultura escolar. É uma ideia que está ligada a teorias específicas, mas muito
mais à prática dessas teorias. Trabalha na perspectiva da educação integral, que
busca desenvolver todas as acepções do ser, em sua integralidade, sem separar o
que seria “racional” do que seria “intuitivo”, “emocional” ou “espiritual”. Não
existe religião fixa, ou forma fixa específica de condução, nem um lugar fixo específico
onde pode se desenvolver tal processo educativo. Existem possibilidades a serem
pensadas e sistematizadas, a partir das demandas específicas de cada grupo
social que se propõe a tirar seus filhos da escola ou mesmo pela busca de transformar
essas escolas, pois uma mudança tão profunda no modo de operação dessas instituições
inevitavelmente refundaria essas mesmas instituições. Pode ser desenvolvido e
praticado em qualquer lugar, por qualquer pessoa, de infinitas maneiras, a
serem todas sentidas, estudadas, refletidas e analisadas.
Pois bem, o que se observa da proposta do governo atual para o assunto, tem
mais a ver com legislar práticas específicas de ensino domiciliar, do que
propriamente se preocupar com um processo de desescolarização. Primeiro, porque
pensar uma sociedade sem escolas, hoje, seria inviável, primeiro porque a maioria
das pessoas se deixaria conduzir pelo desejo desenfreado de consumo e violência,
e a prática da desescolarização está intimamente atrelada ao cuidado de si, ao
autocuidado, à autonomia, ao autogoverno, à disciplina positiva, ao respeito
pela diferença, ao respeito à natureza, e às diversas éticas filosóficas que
propõem a não-violência como pilar central do processo de desenvolvimento do
ser. Segundo, porque o governo atual acredita que a educação não é dever do Estado
(e nós acreditamos que não é dever SÓ
do Estado), e está usando o ensino domiciliar e o termo desescolarização para embasar
(e justificar) a necessidade da privatização das instituições públicas de
ensino, num movimento que segue a lógica do sucateamento, a partir da falta de
investimento.
Portanto, qualquer governo, seja ele do lado que for, quando se impõe sob
a forma da repressão, do autoritarismo, e da plena falta de respeito para com o
diferente, pode até conseguir legislar sobre algumas especificidades da
educação domiciliar, mas jamais poderá se referir à desescolarização.
Na prática, a desescolarização é a desconstrução da cultura escolar e sua
ressignificação integral, no ser e na instituição; já o homeschooling tem sido uma transferência da escola para o lar. As
propostas de desescolarização não buscam educar para a competição, nem consideram
a transmissão de conhecimento como principal pilar do desenvolvimento. A
desescolarização está atrelada ao respeito pela diferença, ao entendimento de
si, ao aprendizado das nossas próprias emoções a partir das situações práticas
e cotidianas, para aprendermos, todos juntos, adultos, adolescentes e crianças,
a cuidar de si, do outro e do mundo, a partir da não-violência e da plena simbiose
e respeito com a natureza.
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