O conhecimento histórico se constitui, legitima-se
e distribui-se através de arquétipos
históricos. Tais arquétipos são elaborados culturalmente
através de verdades funcionais, e são passíveis de serem elaborados,
identificados, descontruídos e ressignificados. Na operação historiográfica, ou seja, no processo de construção do que
se denomina “nossa história oficial”, legitimada institucionalmente, percebe-se
a construção de (discursos de) verdades históricas acopladas sistematicamente a
regimes de verdades (formas de seleção, legitimação e distribuição do
conhecimento) que são veiculadas pela própria comunidade (nesse caso, científica,
acadêmica) como verdades históricas. Na contracorrente dessa perspectiva, o
conhecimento histórico prático, cotidiano, é realocado a novas perspectivas de
consciência histórica, ressignificando, assim, o conhecimento politicamente
legitimado (BENJAMIN,
1994; FINLEY, 1989; CHARTIER 2010; RÜSEN, 2001, 2007a, 2007b; CERTEAU, 2000;
GINZBURG, 2007a; RICOUER, 2007b; D’ASSUNÇÃO BARROS, 2004; KOSELLECK, 2014).
A história na prática da vida (o
conhecimento histórico operado na sociedade enquanto práxis cultural) busca dar
sentido ao passado (e ao futuro) a partir do presente, considerando toda a
relação humana, de si consigo (si-mesmo) e de si com o mundo (acontecimento), estando,
essa relação, sempre mediada por um sistema de signos culturalmente estabelecidos.
Por isso a História está abalada e perde seus paradigmas, pois ela passa por desconstruções
constantes e, consequentemente, por constantes e múltiplas crises de
ressignificação.
A fim de que a História desenvolva um
papel social de transformação real no sujeito, em função da estrutura interna
(si-mesmo) e externa (acontecimento), ela precisa ser entendida em seu abalo, a
partir da necessidade de uma desconstrução de si, de sua estrutura, e da
ressignificação epistemológica. Para tanto, precisamos entender como acontecem
os movimentos de narrativa histórica da prática da vida (BENJAMIN, 1997) que
atuam como críticos minuciosos da própria vida, enquanto buscam descontruir e
ressignificar, a partir de constructos simbólicos, o que até aqui serviu mais à
organização do mito do Estado e ao movimento progressista teleológico, do que
propriamente à ressignificação prática da própria vida.
Reivindicações
frequentemente muito legítimas justificam uma profunda reflexão epistemológica
em torno de critérios de validação aplicáveis à “operação historiográfica” em
seus diferentes momentos. [...] Seria legítimo postular uma pluralidade de
regimes de prova da História que seria exigida pelos diversos objetos e métodos
históricos? Ou devemos nos esforçar para elaborar uma teoria da objetividade
que estabeleça critérios gerais que permitam distinguir entre interpretações
aceitáveis e inaceitáveis? (CHARTIER, 2010, pp. 30-31).
O conhecimento histórico prático mobilizado pela sociedade caminha por fora do conhecimento sistematizado pelas instituições legitimadas pelo poder político (que, por sua vez fundamenta uma práxis cultural histórico-social do presente), já que a História, na prática da vida, dá sentido ao espaço-tempo dos sujeitos a partir das demandas do próprio cotidiano desses sujeitos, e não dos estudos institucionalizados ou dos métodos que analisam essas práticas “de fora” ou a partir de ferramentas elaboradas sem a participação desses “sujeitos da rua”. Outrossim, o fato de toda a relação humana, de si consigo (si-mesmo) e de si com o mundo (acontecimento), ser mediada por um sistema de signos constantemente (re)estabelecidos e co-criados culturalmente, proporciona aos historiadores a possibilidade de ressignificar a teoria da História a cada novo movimento de construção de uma outra narrativa histórica. A História passa por constantes e múltiplas crises de ressignificação, já que não é possível interpretar fenômenos e movimentos da vida cotidiana através de (re)narrativas históricas estanques, pois a vida prática dos sujeitos no mundo opera entre infinitas interpretações possíveis do passado, que, por sua vez, atua como crítica minuciosa à própria vida.
A
História não é um destino, pois tem fortes ligações com os tempos, enquanto
dialoga com o presente e suas dúvidas; não é estática, pois a cultura da vida,
do dia a dia, e suas possibilidades de desconstrução e ressignificação do
conhecimento histórico, são letais para a História presa aos ditames da ciência
moderna e aos esquemas metodológicos e/ou teóricos de autores; e não é
metafísica, pois as problemáticas da psique ou do espírito abarcam questões
(racionais) ainda não legitimadas pela cientificidade laica estabelecida
através do poder institucionalizado.
Através das teorias do inconsciente
coletivo e dos arquétipos (arquétipo
histórico) e da sincronicidade (a história não se repete) de Jung (2000,
2005, 2008); e através da problematização cassireriana acerca do humano como animal symbolicum (CASSIRER, 1977, 1992, 2001, 2004, 2011), percebe-se que
as relações de constituição da cultura humana, consciente e inconscientemente,
são sempre constituídas e mediadas por um sistema de signos co-criados
culturalmente, legitimados através de práticas sociais sincrônicas que
determinam comportamentos através do estabelecimento de automatismos culturais:
Só é possível entender as
condições atuais do nosso mundo da cultura – que é puramente simbolizante – se
considerarmos que não há como subtrair as condições de existência as quais
criamos nele, já que estamos irremediavelmente ligados e integrados a elas,
pois não vivemos mais num mundo puramente físico, e sim num mundo simbólico
[...]. É inegável que o pensamento simbólico e o comportamento simbólico tenham
e sejam traços característicos da vida humana e que todo o processo da cultura
humana esteja baseado nessas condições (CASSIRER, 1977, p.47-51).
Alterações nessas “condições”
citadas por Cassirer só são possíveis quando identificados, desconstruídos e
ressignificados os constructo-simbólicos dos arquétipos, consciente e
inconscientemente, individual e coletivamente, dada a carga de significação
constructo-simbólica que baseia e estrutura esses arquétipos.
O
conhecimento histórico que nasce na vida prática e tem função social e cultural
de modular a memória (o que deve ser lembrado ou esquecido; como; quando; por
que e por quem) pode desconstruir e ressignificar os arquétipos históricos através de um discurso elaborado em processo
conjunto com a reconstituição do inconsciente na memória, refazendo o caminho
arquetípico psíquico que articula as ideias às estruturas arquetípicas existentes:
O discurso sobre a memória
revelou uma distinção muito útil de três diferentes modos de lidar com o
passado na vida social, que também podem ser úteis se aplicados à questão da consciência
histórica: a memória comunicativa; a memória coletiva e a memória cultural.
Esses três tipos de memória representam diferentes níveis de seleção e
institucionalização com patamares correlacionados de permanência e resistência
à mudança. Processos históricos de longa duração podem ser interpretados pelo
uso de hipóteses de transformação comunicativa nas memórias coletiva,
comunicativa e cultural. Toda memória histórica muda no curso do tempo, mas
enquanto a memória comunicativa é fluída e depende de circunstâncias correntes
e a memória coletiva mostra os primeiros sinais de permanência institucional ou
organizacional, a memória cultural torna-se uma instituição com alto grau de
permanência (RÜSEN, 2007b, pp.166-167).
Tais
relações micro e macro organizacionais da existência formam um todo cultural
que nos move em sociedade (GINZBURG, 2007). Essa tríade relacional (eu-eu /
eu-nós / nós-mundo) é derivada desse movimento histórico arquetípico geral,
cujo arquétipo histórico universal (verdades teleológicas dos fatos, temas e
memórias coletivas) constitui-se em conjunto com nossos arquétipos individuais
(nossas relações pessoais, verdades, crenças, intuições e vontades) que, por
sua vez, inter-relacionam-se e mobilizam uma massa cultural característica, com
suas peculiaridades e generalidades, dando a sensação de pressão na relação
tempo-espaço-acontecimento, e que só o conhecimento institucional legitimado
politicamente é autêntico.
Se a ciência era concebida
como um conhecimento universal e necessário, a esfera da objetividade por
excelência, hoje a ciência passa a ser compreendida como um conhecimento
simbólico, uma “construção” simbólica em meio a outras. Nessa perspectiva,
perde seu caráter universal e necessário e se coloca no mesmo patamar de outros
conhecimentos simbólicos, de outras formas simbólicas (CASSIRER, 2011, p.74).
Assim, a História se torna um arcabouço
epistemológico, que estrutura um mito a ser construído e mantido. Isso se deve
ao poder que a memória simbólica inconsciente tem de influenciar nossa
consciência simbólica (JUNG, 2008) e, por certa medida, nossa sociedade se
transforma através da influência desse inconsciente simbólico atuando em nosso
consciente coletivo e individual, e a forma como isso se processa se inicia a
partir das imagens e dos constructos simbólicos que vemos e construímos
(CASSIRER, 2011) desde crianças, fundando os arquétipos que nos constituem
(JUNG, 2008).
Essa tal “história popular” carrega constructos
próprios de interpretação histórica (coletiva e individual) que são
sistematizados no mundo prático da vida durante nossa existência em sociedade.
Assim, vamos, aos poucos, modulando nossa memória mais em função de nossas
demandas do que de um corpus academicus.
Enquanto animal symbolicum, nossas relações conosco mesmo, com o outro, e com o
entorno, processam-se através do espelhamento de nossas virtudes e defeitos,
materializado nos constructos que estruturam uma percepção cultural comum. Daí
se processa a formação estrutural da verdade em nós, ligada à memória que
lembra e esquece – fatos, temas e memórias de uma estrutura universal e
individual, construídos e reconstruídos de geração em geração.
[...] Não existe uma
“realidade” que seja interpretada de diferentes formas, mas uma “realidade” que
é construída de diferentes formas, com diferentes perspectivas e valores
[porque, nesse movimento,] As formas simbólicas são criadoras de uma totalidade
ordenada, isto é, criam seu próprio cosmos explicativo: cada qual pretende
possuir validade universal e se concebe como a única forma de interpretação
válida. Na linguagem, na religião, na arte, na ciência, o homem não pode fazer
mais que construir seu próprio universo – um universo simbólico que lhe permite
entender, interpretar, articular e organizar, sintetizar e universalizar sua
experiência humana (CASSIRER, 1992, p.359).
Reinterpretar
uma configuração simbólica a partir de outros constructos, em tese, trata-se de
uma reconfiguração de base epistemológico-histórica, e resgata uma função
social para o conhecimento histórico:
O modo de ser no mundo já é
em si uma maneira de interpretá-lo, e esta interpretação é uma tentativa de
dar-lhe sentido que faça compreender-nos como parte dele. A negação desta
potencialidade da interpretação é, no fundo, uma negação do próprio ser e é
nela que se fundamenta a exploração humana (RÜSEN, 2006, p.12).
A influência do sistema do tarô na
transformação da História: uma ação política
Para mobilizarem-se esses “modos de
ser no mundo que já são em si uma maneira mesma de interpretá-lo”, elaboram-se,
na sociedade, técnicas de si, exercícios filosóficos e didáticos que atuam
diretamente através e com constructos simbólicos que, por sua vez, também se
estruturam em formas arquetípicas, mas que funcionam num movimento de liberdade
interpretativa e de representação, como um espelho da realidade.
O
sistema do tarô se apresenta a nós como uma linguagem constructo-simbólica que
se configura como esse espelho. A História do tarô, da tarologia,
e fundamentalmente análises filosóficas
problematizadas dos usos do jogo de tarô na atualidade, são potenciais
sistemáticos e arquetípicos de (re)significação da memória e do si-mesmo do
sujeito. O sistema do
tarô modifica a percepção histórica do tempo e espaço em que atua,
reconfigurando o si-mesmo no sujeito, pois o sistema do tarô modifica
estruturas arquetípicas do pensamento, ação de (in)consciência da estrutura
mnemônica dos sujeitos, fazendo-os debruçarem-se sobre as memórias de si mesmo
e de seu povo, desconstruindo e ressignificando valores e éticas até então
abafadas pela cultura das media e
pelo conhecimento cientificista legitimado pela institucionalidade política
atrelada ao Estado e ao progressismo. O fato do tarô funcionar através de
técnicas e exercícios filosóficos e didáticos para identificação, desconstrução
e ressignificação de seus próprios arquétipos, contribui para que, nós, humanos
no presente, consigamos realizar esse mesmo movimento, identificando os arquétipos históricos tecidos no tempo.
Tal constatação técnica já vem sendo há tempos problematizada
por diversos outros sistemas milenares de conhecimento, tal como a astrologia,
a numerologia e a cabala, que mobilizam múltiplas ferramentas alternativas com
objetivo de materializar e refletir uma problematização social, fazendo com que
seja possível, através de uma arte simbólica, reproduzir o movimento de construção da
cultura, em esquemas e diagramações que reproduzem o movimento de construção da
verdade, a fim de espelhá-lo, entendê-lo e transcendê-lo. Esse é, pois, um
dos papéis mais importantes do tarô.
Entre os diversos conhecimentos renegados pelos
estudos convencionais legitimados, o tarô, em sua forma terapêutica, sua
imagética (Certeau) e arquetipia (Jung), funciona como um espelhamento do
inconsciente (coletivo arquétipos universais arcanos maiores; individual arquétipos derivados das
combinações entre arcanos maiores e menores) que mobiliza métodos de leitura a
partir de múltiplas combinações de constructos simbólicos, modulando outras possibilidades de discurso de verdade e favorecendo um
ambiente para a recondução do regime de verdades estabelecido.
Jung e
Cassirer
O
conceito de sincronicidade é um elemento da teoria do inconsciente coletivo junguiano
(2008), definido pelos acontecimentos que não se dão por relação
causal, mas por relação de significado. A partir deste conceito se faz
necessário que consideremos como eventos sincronísticos os acontecimentos com
significado igual ou semelhante, e não relacionados à relação causa-efeito (que
chamo de sincronicidade
factual). Vários teóricos da História – Certeau (2000), Ricouer
(2007b), Koselleck (2000), Barros (2004) e Dosse (2013) – endossam essa tese,
do ponto de vista da historiografia, que destaca o papel da formação (institucional)
do sujeito (parte da kultur) na
construção e interpretação do fato histórico (aufklärung); e a importância da história pessoal desse sujeito (vida
privada) durante sua narrativa e interpretação fenomenológica do momento, suas
variáveis psíquicas, seu contexto micro histórico e sua contextura basal, fazendo-nos
perceber que a História não se repete, mas atua em circunstâncias de
aproximação interpretativa, realocando a percepção temporal.
Jung
defende com o conceito de sincronicidade que há, na experiência humana, a
coincidência entre eventos psíquicos que emergem à consciência e eventos
materiais que são experimentados enquanto fenômenos históricos sociais. Essa
coincidência aponta uma ligação direta entre as experiências (psíquica e
material) que formam sentido juntas, mas sem que haja qualquer indício de
causalidade que as conecte (JUNG, 2005).
Cada
linguagem específica possui uma lógica exclusiva para atribuição de sentido. Essa
variabilidade pode ou não alterar os cursos da interpretação histórica. Dependerá
do contexto e contextura de produção e análise do symbolicum (CASSIRER), já que somos co-partícipes da lógica de
possibilidades das múltiplas verdades. Essas relações lógicas têm um caráter
moral que se constitui na relação símbolo-mundo-História, e geralmente explica
o processo de significação das funções comunicativas simbólicas no processo de
formação cultural:
Os
arquétipos imagéticos constituem unidades de base interpretativa; sua rarefação
ou sua multiplicação produz, no relato iconológico, efeitos de retorno ou de
progresso; e as combinações entre os ícones permitem uma classificação das
estruturas arquetípicas da construção dos regimes de verdade da História. Estas
possibilidades podem ser caracterizadas sob diferentes aspectos. Enquanto
fornecem modelos (exemplos) sociais, situam-se numa intersecção entre a
evolução da comunidade particular onde são elaboradas (aspecto microfísico) e a
conjuntura sociocultural que esta evolução atravessa (conformidade cultural –
equilíbrio psicológico). As imagéticas ressaltam, pois, uma hierarquia dos
signos segundo a relação com o ser que manifestam (CERTEAU, 2000, p. 272-273).
O tarô como ação política de rexistência
A
leitura simbólica do jogo do tarô vislumbra uma ética para a construção do
discurso de verdades históricas. O tarô possui um potencial de rearranjamento
simbólico que apresenta à existência humana (perceptível nas figuras e
significados dos arcanos) uma reorganização sistemática da História,
proporcionando uma reinterpretação do mundo. Por tanto, o tarô atua como prática social que entra
no mundo da psique de forma metódica, ultrapassa a esfera da imagem gráfica, e
estabelece uma conexão (re)constructo-simbólica que varre o inconsciente, pois
seu jogo se organiza a partir de uma interceptação arquetípica, sistematizada
na organização de suas tiragens, no movimento de suas cartas, nos sentidos e
significados universais e individuais que seus grafismos e historicidade
carregam, dependendo da sua modulação organizada. O sistema do tarô é uma
práxis que reproduz uma prática correspondente a uma totalidade histórica
ordenada, que articula, organiza, sintetiza e universaliza realidades da
experiência humana, para que conheçamos possibilidades de verdades a partir da
incursão psíquica, remodulando a estrutura arquetípica da História, já que na psique
e em suas mediações simbólicas, as experiências não estão ligadas pela
casualidade (BENJAMIN, 1997), mas pelo significado (JUNG, 2000). Logo, o jogo do tarô pode funcionar
como prática libertária.
História do tarô? Algumas referências...
As
mais antigas referências documentais sobre o tarô foram encontradas na cidade
italiana de Ferrara e datam de 1442. Em 1441 foi fabricado em Milão o que se
supõe ser o mais antigo exemplar do baralho (FRAZÃO, 2010). Mas especulações e
associações interpretativas indicam que o tarô pode ser mais antigo, inclusive
pode não ser exclusivamente europeu. Mas acredita-se que foi nas grandes
navegações do século XVI que os marinheiros trouxeram seus primeiros baralhos
de Portugal (PEGLIARI, 2002), e que o tarô entrou no Brasil junto com o baralho
comum, já que o baralho comum pode ter vindo do próprio tarô – os chamados
Arcanos Menores.
Em
1769 criou-se a Real Fábrica de Cartas de Jogar em Lisboa, anexa à Impressão
Régia, privilegiada pelo fabrico e venda por todo o Reino e colônias. Longe dos
olhos da Coroa e favorecidos pela escassez de material, surgiram tentativas de
sua impressão no Recife e Rio de Janeiro no século XVIII, mas foram devidamente
confiscadas pelas autoridades por ferir o monopólio de produção gerido pela
própria Coroa. Estabeleceram-se preços diferentes para o baralho em Portugal e no
Brasil e enquanto a Real Fábrica sustentava a lucratividade, no Brasil, as
autoridades alertavam às falsificações (FRAZÃO, 2010).
A
vinda de D. João VI com sua corte em 1808 trouxe alento à atividade econômica,
com a abertura dos portos e à criação da Impressão Régia no Rio de Janeiro.
Nesse momento baralhos comuns (arcanos menores) e o tarô (arcanos menores e
maiores) já haviam entrado no Rio de Janeiro. Três anos depois, foi anexada à
Impressão Régia a Real Fábrica de Cartas de Jogar, que passou a ter o monopólio
do fabrico e venda de baralhos comuns (FARIAS, 2005). Em 1818, a Real Fábrica
foi entregue em arrendamento a Jaime Mendes de Vasconcelos & Cia. O
contrato foi rescindido por falta de pagamento, em 1823, sendo o fim do
monopólio do Estado na produção das cartas (PAGLIARI, 2002).
Nos
anos seguintes começam a ser ofertados baralhos importados da Europa, num
primeiro momento da França e Alemanha, e depois da Bélgica. Acredita-se que
nesse momento o tarô começou a se popularizar no Brasil. Como capital do
Império e centro econômico do país, o Rio de Janeiro atraía imigrantes, entre
eles técnicos gravadores, que vão dar mais qualidade ao que aqui se produzia de
artes gráficas. O século XIX encerra com o aparecimento de dois fabricantes de
cigarros no Recife, que aproveitam seu setor gráfico para produzir cartas para
jogo: Moreira & C. e Azevedo e C., respectivamente, com a “Fabrica Caxias”
e a “Fabrica Lafayette”, ambas fundadas em 1884 (FARIAS, 2005).
Alguns
estudos menos técnicos e mais aprofundados, que relacionam o tarô ao esoterismo
e ao ocultismo, são desenvolvidos pelo historiador e esoterista brasileiro Rui
Sá Silva Barros, em sua tese “Tomando o céu de assalto – esoterismo, ciência e
sociedade, entre 1848-1914 – na França, Inglaterra e EUA”, defendida na USP em
1999 e publicada em 2013. Barros apresenta o contexto da grande difusão dos
ensinamentos herméticos, que resultaram em teorias que afetaram profundamente a
compreensão contemporânea do tarô.
Outro
contemporâneo nesse contexto é o escritor, tarólogo e astrólogo Nei Naiff, que
repassa alguns registros históricos e autores no mundo que escreveram sobre o
tarô, sob um olhar meticuloso e crítico, “tentando sempre separar a História e
as fantasias, mas apresentar ambas” (NAIFF, 2012). Em “Manifesto para o futuro
do Tarô” (2012), Naiff apresenta mais de 50 pessoas e suas respectivas obras
(entre esotéricos, cartomantes, tarólogos, historiadores, filólogos, filósofos,
mitólogos, arqueólogos, restauradores e artistas), todos “apagados” da história
oficial, numa compilação-síntese apresentada junto com astrólogo e editor
Constantino Riemma, na plataforma digital Clube
do Tarô.
Desta
compilação, destaco alguns nomes que, no decorrer de três séculos, foram
dedicando-se à tarologia, mas que, do ponto de vista da história convencional,
foram praticamente esquecidos: os franceses Court de Gebelin (1719-1784), Etteilla ou
Jean-Baptiste Alliette (1738-1791), Eliphas Levi ou Alphonse Louis
Constant (1810-1875), Stanislas de Guaita (1861-1897), Papus
ou Gérard Encause (1865-1917), e René Guénon (1886-1951); o
franco-suíço Oswald Wirth (1860-1943); os ingleses MacGregor Mathers
(1854-1918), Arthur Edward Waite (1857-1942), Aleister Crowley
(1875-1947); e, por fim, dois russos que se dedicaram com tal profundidade, que
escreveram obras sobre o sistema do tarô, estabelecendo, de certa forma, as bases
para uma ciência tarótica: Gregory Ottonovich Mebes (1868-1930) e Valentin
Tomberg (1900-1973) (NAIFF, 2012; RIEMMA, et al., 2017).
Mebes,
professor, tarólogo e esoterista, morreu em campo de concentração do regime
stalinista, consequentemente nos restou pouco de seus cursos, como algumas anotações
de alunos, sem muitas explicações para quem desconhece a simbologia da “Árvore
da Vida”, e/ou não participava diretamente do contexto prático em que Mebes
realizava seu trabalho. Já Valentim Tomberg, contemporâneo de Mebes, manteve-se
anônimo e sobreviveu ao regime, sendo considerado um dos autores mais
consistentes na indicação dos vínculos do tarô com diferentes correntes de
ensinamento. Seu texto “Meditações sobre os arcanos maiores do Tarô” foi
preparado para publicação e mostra-se bem didático. Hoje, os estudos de Tomberg
e Mebes podem ser considerados o ponto alto dos estudos sobre o tarô (NAIFF, 2012).
Poucas
publicações brasileiras tratam do tarô nas Américas e no Brasil. Destas,
destacam-se os trabalhos de Ignácio de Loyola Brandão (2008), que traz um
estudo comemorativo do centenário da fábrica COPAG no Brasil, onde destaco o
monopólio da empresa sobre a produção das cartas no século XX; o trabalho de
Priscila Farias (2005), que desenvolve uma análise de design e aspectos da
História gráfica do baralho no Brasil entre 1870-1960; a portuguesa Fernanda
Frazão (2010), que destaca a História das “cartas de jogar” em Portugal e
colônias e o papel funcional e artístico da Real Fábrica de Cartas de Lisboa no
século XV até 2010; e José Luiz Giorgi Pagliari (2002), que apresenta múltiplos
usos (e abusos) do jogo de baralho no Brasil.
Mundialmente,
destacam-se três estudos que se debruçam sobre as relações entre o tarô e
outros conhecimentos esotéricos e psíquicos. É o caso de: “Alquimia e Tarô –
uma investigação de suas conexões históricas”, de Robert M. Place (2005), obra
considerada um dos manuais gráficos mais completos do tarô de Marselha na
atualidade; “Jung e o Tarô – uma jornada arquetípica”, de Sallie Nichols
(1997), obra que relaciona arquétipos do tarô com arquétipos da psicologia
analítica junguiana, sistematiza teorias sobre individuação, sincronicidade e
imaginação ativa referente à análise das cartas do tarô de Marselha como uma
“representação das diferentes etapas do indivíduo rumo à transformação e à
integração de si mesmo” (Van Der POST, 1980, p.15-17 Cf. NICHOLS, 1997); e “O Caminho do Tarô” (2016), de Alejandro
Jodorowsky e Marianne Costa, um tratado de morfologia, de simbologia e de
psicologia, do tarô de Marselha.
Entre
americanos, destacam-se Paul Foster Case (1884-1954), que se vinculou a fontes
europeias de linha Rosa-Cruz e Golden Down, e que escreve um livro sobre o tarô
no qual revê e redesenha as cartas de Waite; e o espano-argentino Jesus
Iglesias Janeiro (1930-1971), autor de La
Cabala de Predicción, que elaborou várias obras e publicou muitos trabalhos
pela Editora Kier, criou um tarô de grande aceitação (tarô de Kier, 1954),
reproduzido inclusive pela USGames,
importante editora estadunidense de baralhos no início do século XIX
(ESCALANTE, 2009 Cf. RIEMMA et al.,
2013, s/p).
Referências
relevantes, mas poucos populares são: “A
escada mística do Tarô”, de Andrea Vitali (2010), traduzido por
Leonardo Chioda, que remonta às fontes medievais cristãs e alquímicas dos trunfos
ou arcanos maiores; “Concepções históricas,
imaginárias, iconográficas e simbólicas do feminino no tarô”, do tarólogo e historiador Ricardo Pereira (2011); e “A
simbólica dos arcanos: uma peregrinação da alma” de Jean-Claude Flornoy (2005),
estudioso francês e restaurador de cartas – Flornoy destaca que, por volta de
1240, os escultores da Catedral de Chartres, na França, antecipam o que seria o
tarô, em seus grafismos evidentes, como o Cristo, no centro da mandorla desta
Catedral, que evoca algumas figuras dos arcanos maiores, e o baixo-relevo da
Catedral de Amiens, que clara analogia com a carta 16, “A Casa de Deus” ou “A
Torre” (RIEMMA et al., 2013, 2016).
Breve história morfológica (quase)
convencional do tarô
A
partir dos mais antigos exemplares conservados das cartas, mudanças sofridas ao
longo do tempo foram menores do que se poderia esperar: os quatro naipes
conhecidos hoje são os mesmos dos jogos italianos de outrora (Copas, Espadas,
Paus e Ouros); as dez cartas numéricas – as figuras – são em número de quatro
para cada naipe (um rei, uma rainha – ou dama –, um cavaleiro e um valete).
Restam ainda 22 cartas especiais que, de certo modo, formariam um “quinto
naipe”, com o mesmo sentido de trunfo: cartas que se sobrepõem às demais.
Restaram ainda inúmeras cartas pintadas à mão, do século XV, que, juntos com os
exemplares italianos dos séculos XII-XIV, são os mais antigos legados
históricos que se tem notícia e hoje se encontram sob a guarda de museus
turcos, italianos, franceses, espanhóis, portugueses; ou em posse de
colecionadores (BARROS, 2013).
[...] o tarô não se chamava
tarô, e nem as cartas se chamavam arcanos. É a última coisa que lembro [...]
antes de aterrissar meus pés no chão e ver que o tarô ainda engatinha na
história, comparado à astrologia, à numerologia ou à cabala [...]. Os primeiros
registros do tarô datam por volta de 1377/1430; o que denominamos de tarô era
chamado de Ludus Cartarum (cartas
lúdicas) ou Naibis. Depois, por volta de 1440/1500, passou a se chamar Trunfos (mais usual à época), Tarocco ou Tarochino. Por volta de 1550/1600 de Trunfos do Tarot, na França; e Tarocco,
Minchiatte ou Florentino na Itália. Somente por volta de 1850/1900 surge o termo
Arcano no tarô. No século XX cada país passa a nacionalizar a palavra: tarocco (Itália); taroc (países germânicos); tarok
(leste europeu); tarô (língua
portuguesa) e tarot (na maioria dos
países) (NAIFF, 2012, s/p).
Entretanto,
não se sabe ao certo a origem, nem se pode afirmar se o conjunto dos 22 Arcanos
Maiores, com seus desenhos emblemáticos, ou se os já bem conhecidos 56 Arcanos
Menores, com seus quatro naipes, foram criados separadamente e depois combinados
num único baralho; ou se, desde seu nascimento, já tiveram a forma de um
baralho com 78 cartas relacionadas.
A
versão histórica na qual me debruço é a que indica que as 56 cartas do baralho
comum foram copiadas de um jogo de cartas tipicamente difundido entre os
guerreiros mamelucos ou sarracenos, o baralho de Mamlûk. As cartas mamelucas (ou sarracenas) resumem-se a três
baralhos incompletos que estão guardados no Museu Topkapi, em Istambul, na
Turquia, e que provavelmente vieram do norte da África, da região do Egito.
Tais cartas lembram os tarôs italianos mais antigos, por causa de seu grande
tamanho (25cm x 9,5cm) e sua técnica decorativa (pintadas à mão sobre folhas de
cartão). De origem árabe, são os baralhos mais antigos que se conhece, embora
alguns itens isolados encontrados em coleções de outros museus pareçam ser dois
séculos mais antigos, datando do período Ayyûbid (1173-1250). Já os autores das
22 cartas, hoje denominadas Arcanos Maiores, permanecem desconhecidos (POLLET,
s/d Cf. TORII & RIEMMA, 2008).
Anteriores
ao tarô mameluco encontram-se apenas referências genéricas a “jogos de cartas”.
É bastante citado, nos estudos de tarô, o relato de Johannes, monge alemão de
Brefeld, Suíça, que falara de “um jogo chamado jogo de cartas que chegou até
nós neste ano de 1377”, mas declara expressamente não saber “em que época, onde
e por quem esse jogo havia sido inventado”. Sobre as cartas utilizadas, diz que
os homens “pintam-nas de diferentes maneiras e jogam com elas de um modo ou de
outro [...]” (NAIFF, 2012, p.14).
Alguns
estudiosos mostram ainda analogias entre o tarô e um antigo jogo indiano, o
Chaturanga, ou jogo dos Quatro Reis, que data do século V ou VI, antecessor do
moderno jogo de xadrez. Não há, porém, indicações consistentes, no sentido
positivista do termo, de como poderia ter ocorrido um caminho entre esse jogo e
o tarô. Já outros estudos afirmam que as cartas de jogar foram levadas para a
Europa pelos cruzados. Mas, oficialmente, a última cruzada terminou em 1291, e
não existem referências que comprovem a presença de cartas de jogar na Europa
até, pelo menos, cem anos depois (RIEMMA et. al., 2013 e 2016).
Muitos
estudos também apontam as relações entre o tarô e a mística judaica (Eliphas
Lévi), atrelando o tarô à cultura hebraica, por exemplo. De fato, os 22 Arcanos
Maiores são em igual número das letras do alfabeto hebraico e aos 22 “caminhos”
ou conexões entre as esferas do desenho simbólico denominado “Árvore da Vida”,
da Cabala judaica. As 40 cartas numeradas, dos Arcanos Menores, representam o
mesmo número de esferas da “Escada de Jacó”, esquema resultante da superposição
de quatro “Árvores da Vida”.
O
tarô também poderia ser considerado um livro sem palavras, comuns na alquimia,
para a reflexão e a meditação sobre a “salvação eterna”, a busca de si, mesmo
para quem não soubesse ler. Era uma “porta aberta à verdade”, tal como as
catedrais, que permitiam aos pobres e aos ricos crescerem “na comunhão com
Deus”. Assim, “O tarô”, afirma a historiadora e astróloga Kris Hadar, “é uma
catedral na qual cada um pode orar para descobrir, no labirinto de sua
existência, o caminho da Salvação” (TORII, 2009, s/p Cf. RIEMMA et al. 2013).
No
Brasil é difundida a hipótese que associa a origem do tarô às “cartas de ler a
sorte” dos ciganos, provenientes do Hindustão. Mas os registros disponíveis
indicam que é no começo do século XV que esse povo começa a entrar na Europa.
Além do que, há evidências de que os grupos ciganos só estenderam suas
peregrinações para o interior da Europa depois que as cartas já eram conhecidas
lá há algum tempo. Mas, por ser um povo nômade, que recorria aos mais variados
recursos e talentos para sobreviver, cujas mulheres particularmente utilizavam
artes mânticas para ler a sorte dos habitantes das comunidades que visitavam,
fez com que ficassem intimamente associados à origem das cartas. Entretanto, mesmo
afastados da tradição escrita e da arte de impressão das cartas, os ciganos
tiveram grande importância na circulação e difusão do tarô, devido ao seu papel
social e cultural, como a cartomancia. O jogo de cartas comumente denominado
Baralho Cigano, no Brasil, é o Petit Lenormand, jogo com 36 cartas, impresso na
França a partir de 1840 (FRAZÃO, 2010; RIEMMA et al., 2013).
Entretanto,
há pontos de concordância entre a maior parte dos estudiosos: primeiro, de que o
tarô não se trata de uma manifestação ingênua e despropositada. Ao contrário, a
abstração das 40 cartas numeradas, bem como as evocações simbólicas dos
trunfos, permitem associações com inúmeras outras linguagens simbólicas
esotéricas e místicas, considerando-as, assim, uma produção intencional bem
elaborada. Outra concordância é que, na origem, o tarô não tinha função somente
lúdica, de lazer, apostas ou adivinhação; mas tinha um papel de estimular a
reflexão pessoal sobre o caminho espiritual. Contudo, segundo Riemma
(2013), ele não podia ser mencionado nas crônicas da época, pois o universo de
autoconhecimento era bastante oculto e perseguido, o que dificulta entender o
tarô em sua historicidade intencional.
Por
fim, os trabalhos mais recentes tratam do ponto de vista artístico do tarô.
Lívia Krassuski, num artigo intitulado “A estética do Tarô” (2015), quando
trata do Golden Dawn – movimento
responsável por um forte ressurgimento e popularização do esoterismo e do
ocultismo na Europa do século XIX –, resgata os baralhos criados sob essa
inspiração: o Baralho Rider-Waite, de Arthur E. Waite; o Tarô Thoth, de
Aleister Crowley; e o Tarô da Aurora Dourada, criado por MacGregor Mathers
(KRASSUKI, 2015); já a dissertação
de Fernanda F. M. Viana (2016), defendida no programa de pós-graduação em artes
e cinema da Universidade do Porto, trata da migração dos símbolos do tarô de Marselha
para fotografias, as foto performance.
Sua base criativa é “a ressignificação dos arcanos para a criação de uma nova
simbologia e estética, a partir de pares de imagens escolhidos para um diálogo
semiótico” (VIANA, 2016, p.04-05). Neste trabalho, encontra-se forte presença
da cultura afrodescendente nas releituras semióticas dos arcanos.
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