terça-feira, 28 de maio de 2019

O governo Bolsonaro, a desescolarização e o homeschooling


A proposta deste texto é elucidar alguns pontos sobre a diferença entre desescolarização e homeschooling, e refletir rapidamente sobre a proposta do governo Bolsonaro sobre esse tema.

Nos últimos dias vimos ventilar algumas notícias sobre o governo Bolsonaro ser “a favor” da “desescolarização”. Segundo o Le Monde Diplomatique, a notícia é que, sob a justificativa de garantir amparo legal às famílias adeptas à prática do ensino domiciliar, também conhecida como homeschooling, o governo Bolsonaro propôs uma medida provisória que busca legislar essa modalidade de “ensino”. E embora ignore quatro projetos anteriores sobre o assunto e que já tramitam no congresso há alguns anos, a proposta do governo é amparar os interesses específicos de famílias adeptas aos princípios cristãos do protestantismo e do evangelicalismo.

Mas, calma! Tem muita coisa para ser discutida aqui sobre esse assunto. Primeiro que esse não é um assunto novo, embora pareça. A conversa sobre desescolarização da sociedade começa lá nos anos 1950, no México e nos EUA, depois toma diferentes formas, podendo ser uma delas o homeschooling, ainda nos anos 1970. No Brasil, a forma do homeschooling toma prática nos anos 1980, e com mais força na década de 1990. Então, atenção: o homeschooling surgiu do debate acerca da necessidade de um processo de desescolarização, então não são a mesma coisa.

O que é concordância, tanto para a desescolarização, como para o homeschooling, é que, na maioria das sociedades, as escolas não estão mais dando conta das novas demandas da nossa sociedade, seja pela forma como estão construídas, montadas e organizadas, seja pela cultura escolar que tomou a forma do conteudismo e da competição como principais norteadores de uma prática educativa eficiente. Mas há muito mais diferenças do que semelhanças entre a desescolarização e o homeschooling.

Na prática, o que se tem observado é que o homeschooling geralmente se processa como uma “transferência” dos conteúdos da escola para casa. Junto com eles, associam-se outros conteúdos específicos escolhidos pelas famílias, assim como seus princípios morais e éticos, geralmente religiosos. Então se tira a criança da escola e se “leva” a “escola reformada” para dentro de casa. Inclusive, diversas empresas já estão habilitadas a construir softwares e livros específicos para essa lida doméstica.

A desescolarização pode também abarcar um processo de ensino domiciliar dentro de si, mas de outra forma, porque é outra coisa. A desescolarização é uma ideia de promover a diversidade e reconhecer alteridades. Não prima por uma ética ou moral específica religiosa, nem se enquadra num processo político “de direita” ou “de esquerda”. A desescolarização é uma busca de desconstrução e ressignificação da forma como se “transmitem” e se constroem os conhecimentos nas pessoas, inclusive dentro da própria escola. Quando nos referimos à desescolarização, estamos nos referindo à reflexão e à desconstrução do espírito motivador das ideias e costumes da cultura escolar. É uma ideia que está ligada a teorias específicas, mas muito mais à prática dessas teorias. Trabalha na perspectiva da educação integral, que busca desenvolver todas as acepções do ser, em sua integralidade, sem separar o que seria “racional” do que seria “intuitivo”, “emocional” ou “espiritual”. Não existe religião fixa, ou forma fixa específica de condução, nem um lugar fixo específico onde pode se desenvolver tal processo educativo. Existem possibilidades a serem pensadas e sistematizadas, a partir das demandas específicas de cada grupo social que se propõe a tirar seus filhos da escola ou mesmo pela busca de transformar essas escolas, pois uma mudança tão profunda no modo de operação dessas instituições inevitavelmente refundaria essas mesmas instituições. Pode ser desenvolvido e praticado em qualquer lugar, por qualquer pessoa, de infinitas maneiras, a serem todas sentidas, estudadas, refletidas e analisadas.

Pois bem, o que se observa da proposta do governo atual para o assunto, tem mais a ver com legislar práticas específicas de ensino domiciliar, do que propriamente se preocupar com um processo de desescolarização. Primeiro, porque pensar uma sociedade sem escolas, hoje, seria inviável, primeiro porque a maioria das pessoas se deixaria conduzir pelo desejo desenfreado de consumo e violência, e a prática da desescolarização está intimamente atrelada ao cuidado de si, ao autocuidado, à autonomia, ao autogoverno, à disciplina positiva, ao respeito pela diferença, ao respeito à natureza, e às diversas éticas filosóficas que propõem a não-violência como pilar central do processo de desenvolvimento do ser. Segundo, porque o governo atual acredita que a educação não é dever do Estado (e nós acreditamos que não é dever do Estado), e está usando o ensino domiciliar e o termo desescolarização para embasar (e justificar) a necessidade da privatização das instituições públicas de ensino, num movimento que segue a lógica do sucateamento, a partir da falta de investimento.

Portanto, qualquer governo, seja ele do lado que for, quando se impõe sob a forma da repressão, do autoritarismo, e da plena falta de respeito para com o diferente, pode até conseguir legislar sobre algumas especificidades da educação domiciliar, mas jamais poderá se referir à desescolarização.

Na prática, a desescolarização é a desconstrução da cultura escolar e sua ressignificação integral, no ser e na instituição; já o homeschooling tem sido uma transferência da escola para o lar. As propostas de desescolarização não buscam educar para a competição, nem consideram a transmissão de conhecimento como principal pilar do desenvolvimento. A desescolarização está atrelada ao respeito pela diferença, ao entendimento de si, ao aprendizado das nossas próprias emoções a partir das situações práticas e cotidianas, para aprendermos, todos juntos, adultos, adolescentes e crianças, a cuidar de si, do outro e do mundo, a partir da não-violência e da plena simbiose e respeito com a natureza.