quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O ATO FOTOGRÁFICO E A DESCONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA



De modo marcante, durante as décadas de 1970 e 1980, a análise da imagem fotográfica se valeu de grandes sistemas e teorias gerais que se sustentavam na ideia de uma essência da fotografia, referenciada pela natureza técnico ontológica do processo fotográfico, decorrente do modelo visual gerado pela câmara escura renascentista1 (BARTHES, 1980 e 1984; DUBOIS, 1994; BAZIN, 1983, FLUSSER, 1985; SCHAEFFER, 1990; COLLIER, 1973). 

Num primeiro momento, a fotografia significou a irrupção de novos modelos de percepção e novas formas de subjetividade. Posteriormente, uma acepção de estilos e práticas teve efeito a partir dela, ao dar lugar a relações espaciais e temporais diferenciadas que nos induzem a pensar a fotografia à solta de uma essência ontológica, refletindo em fotografias, numa pluralidade de agenciamentos espaciais, temporais e maquínicos, em vários estratos e/ou camadas que apresentam níveis diferenciados de complexidade (FATORELLI 1998).

No momento de sua origem, a fotografia se tornou um destes dispositivos técnicos pelos quais percebemos o mundo. Um tipo de estrutura transcendental que serve para pensar a comunicação em geral, de modo tão abrangente que reordenou as demais práticas visuais. Nesse sentido, a própria pintura, assim como outras formas de representação da imagem passaram a incorporar valores fotográficos, de modo positivo ou negativo, em referência a uma visualidade que a fotografia inaugurara (LÉVY, 1993).

Nesse momento inaugural, a fotografia significou a possibilidade de representação de um espaço e de um tempo quaisquer, em oposição à pose e à fixidez da imagem clássica. Ao longo das décadas, a própria fotografia viria a se modificar em decorrência da presença de outros tipos de imagem, como a imagem em movimento, apresentando deslocamentos como, por exemplo, aconteceu com o movimento futurista e cubista, no que significaram quanto à introdução de um efeito cinematográfico para as imagens estáticas (FATORELLI, 1998).

Ocorre que os meios não se superam uns aos outros, mas antes se recompõem, associam-se e se complementam, em vista de novas demandas. Então, em função da fotografia, não há, portanto, a era da TV ou do cinema, mas sim a era da fotografia televisiva e da fotografia cinematográfica e o surgimento de novas possibilidades de mídias, como os videoclipes e os filmes digitais. A sucessão desses suportes2 não se dá por simples substituição, mas antes, por complexificação e deslocamento de seus centros de gravidade, a exemplo da escrita e da informática, que se inseririam como modos fundamentais de gestão de conhecimentos. Nesses arranjos complexos, o lugar da fotografia não mais poderia ser somente definido com base no critério purista que originou a passagem artesanal fotográfica, as teses ontológicos, essencialistas de outrora (FATORELLI, 1998).

Uma vez no horizonte das imagens técnicas e das novas tecnologias de armazenamento, transporte e reprodução da imagem (BENJAMIN, 1987), não há porque pensar em pontos fixos iniciais e finais, em uma essência do meio que manteria a imagem fotográfica conectada para sempre ao objeto câmara escura e referente real. A realidade passou a ser relativa nesse contexto, e a recusa desse território fechado de interpretação para a imagem fotográfica foi condição para pensarmos essas imagens em suas múltiplas variáveis e redes de significações (BAXANDALL, 2005; LATOUR, 1994). 

A tese de que as imagens fotográficas são realizações das potencialidades inscritas somente no aparelho fotográfico encerram uma definição específica para a imagem fotográfica que é importante para delimitarmos seu significado ontológico essencialista, originário e definidor das transformações que este tipo de imagem trouxe. Mas hoje não é mais possível refletir acerca da imagem fotográfica somente em função desse pensamento, onde se encerra uma definição essencial para ela (SAMAIN, 1998; DUBOIS, 1994; FATORELLI, 1998). 

A discussão sobre a antecedência do aspecto técnico ou do aspecto natural do processo fotográfico testemunha a incompreensão desta natureza técnica da imagem. Logo, proporciona espaço para a formulação de um lugar de híbrido para a imagem, pertencente à natureza, ao coletivo, ao discurso e às condições de onde ele está se inserido (FOUCAULT, 1999). As teses essencialistas desconhecem essas medições, os lugares intermediários por onde circulam esses híbridos. Estas posições, voltadas a identificações singulares de um centro de valor ao processo fotográfico originado da câmara escura deixam escapar nuanças e modos contingentes pelos quais esses híbridos se insinuam (FATORELLI, 1998).

Em função da intencionalidade produtiva da imagem fotográfica, a mensagem fotográfica também se baseia em antilogismos essencialistas da teoria da fotografia, que permeia a constituição dessa imagem fotográfica em, no mínimo, dois planos: um denotativo, onde a mensagem fotográfica se apresenta análoga ao real. Em seguida, abrindo espaço para um plano conotativo, um segundo tipo de sentido à mensagem fotográfica propriamente dita, que se elabora nos níveis da produção fotográfica (escolha, tratamento técnico, enquadramento, paginação; intencionalidade como um todo), codificação análoga ao fotográfico. Embora as teses essencialistas não definam essa conotação à estrutura fotográfica, elas admitem que sua mensagem esteja presente no processo fotográfico (BARTHES, 1984), e esse processo gera uma imagem análoga à fotográfica por conter uma intencionalidade produtiva e/ou formativa, discursiva.

Essa relação discursiva é percebida nas várias formas de representação da imagem análoga à fotográfica, como a holografia, a estereoscopia, a cronofotografia, a cintilografia, a raiografia, a teloscopia, a fotografia do álbum de família, a fotografia espiritualista, a fotografia de denúncia, a fotografia experimental, etc. Desse modo, 

[...] pensar a fotografia em polaridades, assim como as teses essencialistas, é desconhecer o que significou a presença da imagem fotográfica no universo das imagens, seu lugar de híbrido, sua potência de amalgamar linguagem, natureza e cultura, de ser simultaneamente natural e investida, irredutivelmente situada no meio, no espaço discursivo (FATORELLI, 1998, p.88).

A preponderância do papel da História pode ser correlata ao reconhecimento dos híbridos (CHARTIER, 1990; REIS, 2006; RICOEUR, 2007), quanto pretende construir reconhecimento do que não fora narrado e oficializado, assim como o devir da vida é correlato à intencionalidade da trama discursiva, narrativa, cultural, estética, e também técnica, que envolve a produção imagética (BARROS, 2004; CERTEAU, 1994 e 2006), em especial a produção fotográfica (MEIRELLES, 1995; MAUAD, 2008), dada a sua dimensão inaugural de protótipos e técnicas de registro do entorno, seja esta qual for (FATORELLI, 1998; MARTINS, 2008). Em suma, os sentidos que abrangem a fotografia estão para a construção das narrativas e discursos da História, assim como a imagem e sua importância está para a constituição (também crítica) da sociedade hoje. Construir uma imagem fotográfica, em tese, significa também (des/re)construir nossa História única e trazer outras narrativas e discursos possíveis.

Entendemos a eficácia do discurso essencialista sobre a imagem, ao sustentar uma separação total entre natureza e cultura, de modo a fazer o cultural derivar do natural, pois concordamos que, além de discursivas, as imagens possuem outras dimensões específicas, como as estéticas, as políticas e as emotivas, que podem ser estudadas separadamente, dependendo do objetivo do estudo. As teses essencialistas são fortes nas análises dessas dimensões em separado, mas a função da percepção da imagem análoga à fotográfica enquanto possibilitadora do transporte da mensagem fotográfica de forma denotativa e conotativa, híbrida, intencional, nos tece muitos outros fios de entendimento contextual aos usos dessas imagens (KRAUSS, 1985).

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NOTAS

1. Entendemos por suporte, o material diverso (papiro, pergaminho, papel, pedra, vinil, disco magnético, película fotográfica, etc.) capaz de receber e conservar a inscrição de um texto. No contexto das artes, da produção artística, diz-se qualquer estrutura física que serve de base para a produção do trabalho artístico.

Foto de @felipecorreiaaa

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

AUTOBIOGRAFIA COMO ABORDAGEM METODOLÓGICA





Pensar em formas de autobiografia é pensar em formas de entendimento e construção de identidade, na medida em que pensamos os contextos e os personagens que estão em volta de nós. Construir uma tessitura histórica a partir da fala de nós mesmos nos incita a refletir sobre o que somos nesse mundo. Trata-se de um trabalho extremamente complexo e emocionalmente desafiador, porque remexemos em nossos próprios baús de histórias pessoais, e acabamos todos sendo “obrigados” a repensar sobre nossa própria trajetória e, fundamentalmente, sobre quem somos nós e o que estamos fazendo com nossas vidas neste momento. Mas refletir sobre o lugar que ocupamos no mundo não é tarefa fácil. Acreditamos que por isso o trabalho com autobiografia em ambientes de aula de séries com estudantes mais velhos seja um caminho possível. Uma reconstrução constante, como é constante o revisitar de nós mesmos durante as emaranhadas reflexões terapêuticas.

Um dos recortes mais conhecidos e encontrados na relação da biografia com a História é biografia como fonte histórica. Essa relação, entre biografia e História, sempre foi mediano, pois se trata de um gênero que viveu e vive em uma gangorra de aceitação e rejeição. Contudo, nunca deixou de ser produzido. A veracidade da narrativa biográfica sempre levou a desconfiança por parte da História, além desta se ater, geralmente, a acontecimentos coletivos, enquanto a biografia se destina geralmente a estudos individualizantes. Por tanto a biografia é considerada para muitos como “um domínio menor do conhecimento histórico, visto não proporcionar a quantificação e a generalização”, característica da história enquanto ciência (ALCÂNTARA, 2013, s/n). Por outro lado, alguns historiadores, como Michel Vovelle (1989), defende o gênero biográfico, acreditando que este valoriza o qualitativo e o individual da História, tão fundamental quanto o quantitativo e o coletivo. Outros historiadores, como Hayden White (1955) e Malatian (2008), chegam a afirmar que seria a biografia o principal gênero da construção Historiográfica, “pois esta é elaborada pelo povo, por pessoas”. Já para Rémy Handourtzel (2014), ao trabalhar com a biografia, o historiador terá que compreender as questões estruturais e conjunturais, e irá deslizar entre a micro e macro História, sendo este o maior benefício para a análise biográfica. Sem entrar em extremismos, entre ser o “melhor” gênero historiográfico ou o “menos” confiável, é de praxe saber que biografar sempre foi algo extremamente caro aos historiadores.

Noutra esfera existencial, a biografia aparece como um recurso fantástico, na pureza etimológica mesmo do termo fantástico: de fantasia, mito. Biografias são histórias pessoais, das ações de pessoas, de seus eus, de suas personalidades, de suas vaidades, defeitos e qualidades. As biografias sempre foram e são muito utilizadas na perspectiva da construção de um imaginário coletivo sobre alguém sendo um ser. Mas esquece-se de lembrar que nunca tudo sobre um mesmo ser poderá será contado em uma biografia, ou mesmo que tudo o que fora contado lá é fato ou verdade. Além do que, para as biografias, existem limites naturais, por assim dizer, que nos fazem ser incompletos ou imaginativos, como a memória, por exemplo. Sabe-se que memória não recorda tudo. Pelo contrário; recorda pouco, o mesmo pouco do que de nós é geralmente contado. Para que essa memória se torne algo interessante ao coletivo, recorre-se à imaginação, que é a ação da imagem sobre o que um ser fez sendo si mesmo com outros durante certo tempo, num certo contexto1. Logo, memória e imaginação estão sempre juntas, em diferentes medidas. Eis a fundação dos mitos biográficos. E mesmo por isso deixam de ser valiosas fontes históricas para muitos historiadores.

A atividade da construção da autobiografia em ambiente de aula pode nos fazer questionar sobre o método de ensino e de construção da História. Eis o ensaio (coletivo) de um problema (coletivo) sobre a epistemologia do método. Entendemos que conhecimento é transformação, e a transformação substancial de um método se faz a partir de reflexões constantes sobre sua ação. Trabalhar com a história individual de cada sujeito nos redireciona a uma epistemologia do historiar, a uma epistemologia do educar, a partir da percepção de que a representação comum acerca do que seria a consciência histórica conduz à construção de uma espécie de “teoria da representação social consciente2”. Essa reflexão pessoal, individual, fundada numa realidade coletiva a partir do individual – social a partir do pessoal – reinterpreta a possibilidade de educar historicamente, num movimento de ressignificação (significação consciente para ressignificação inconsciente).

No que tange à possibilidade de uma representação e de uma referência identitária do sujeito para com a História ressignificada, a partir de suas individualidades e particularidades coletivas, percebemos uma maneira de reinterpretar uma interpretação apriorística: um caminho possível para uma libertação da construção do eu no mundo. Nesse sentido, a atividade da construção da autobiografia em ambiente de aula nos proporciona um caminho para revisão de estruturas interpretativas obsoletas, numa busca de liberdade que se sedimentou na negação derivada da opressão de si pelo mundo. Eis a primeira consideração intempestiva dessa problematização: as primeiras opressões que muitas vezes atingem-nos, pesquisadores, docentes e discente, estão/partem de nós mesmos, de nossas histórias de vida, que são tão importantes para que entendam a si mesmos e ao mundo, mas que são tão facilmente sucumbidas por outras, oficiais, curriculares, programáticas.

A experiência de trabalhar com as memórias de nós mesmos, não nos faz entender o presente através do passado, como bem metaforizava Gaston Bachelard, ao dizer que o conhecimento acerca do presente nos faz entender o passado, e não o contrário. Walter Benjamin certa vez nos disse algo parecido, comparando uma fotografia familiar com um brinquedo. Benjamin também se referia ao tempo: “o passado é consequência do presente, e não o contrário”, dizia.

Ora, tais metáforas nos fazem pensar muito sobre o trabalho mnemônico, em função de um historiar a nós mesmos. Temos ainda tanta história para ser contada por aí, tantas fontes para serem historiadas. Eis a segunda consideração coletiva dos professores cursistas em nossa primeira aula: o passado é um presente. É a partir do que somos e de como estamos hoje que olhamos para ontem, e então descobrimos, a partir de nossas intencionalidades, o que queremos descobrir, e encobrimos o que não nos interessa. Eis o jogo de acende e apaga, por sobrevivência. Por isso as metáforas são construídas nessa ordem. Os ontens se refazem entre nossos hojes, e nos oferecem sempre outras formas de sermos no mundo. Taí a importância da história.

Laura Gutman (2013) nos explicou que, apesar das memórias serem eternas companheiras dos trajetos de nossas identidades, nossa persona se funda enquanto ainda somos plenos superegos, porque é na fase da primeira infância que se atesta a formação basilar de nossa personalidade. É quando somos crianças, sob a reponsabilidade de quem conta nossa história para nós, de quem está perto de nós, de seus sentimentos, contatos, ações, atitudes, que formamos grande parte do que seremos para os outros no mundo, fundando nossas marcas, marcando nosso caráter no chão da verdade. Dizer sobre o que se faz no mundo é tarefa complexa, embora nos arrisquemos a fazê-lo.

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NOTAS

1. [...] “estar a par do que representa e de como se apresenta a imagem de nós mesmos, que nos molda, é entender e participar do fenômeno histórico enquanto acontecimento. Uma forma de situar o educando (e seu conhecimento) numa relação contextual, dialógica, reflexiva e autônoma [...]” (SOARES, 1998, p.58 Cf. SOUZA VIANA, 2013).


2. Aquisição e reflexão pública do conhecimento de que existe a possibilidade de se reconstruir seu próprio passado (GUTMAN, 2013). O “ensino” de História, convertido em “construção e reflexão das próprias histórias” funcionaria em função de um núcleo de pesquisa da História Social, que transita pelo método e pelo tempo da História do Presente, refundamentando uma epistemologia do método docente (SANTOS – epistemologia da prática, In: Epistemologias do Sul, 2011). Em tese, seria a sistematização de uma prática social consciente do que se deve fazer a partir de uma intencionalidade específica, a fim de construir uma reconciliação entre passado e presente coletivos a partir das individualidades do ser. A conexão entre consciência individual e consciência social sobre o fazer algo é comum a todos, dependendo dos objetivos. Toda a variabilidade da forma de ver um fato na história se apresenta de formas muito diferentes, dependendo da intencionalidade e fundamentalmente de cada modo de fazer. Logo, o método é o ponto problemático de interseção entre todas as formas de fazer histórias.

A IMAGEM E O ATO DE VER


Antes de sistematizarmos uma linguagem e de articulá-la oralmente, o bicho gente já enxergava, já desenhava, inscrevendo em seu espaço e tempo, grafismos figurativos que significavam e comunicavam muito. A imagem ocupa lugar de destaque desde as ilustrações simbólicas gravadas nas paredes de pedra das cavernas onde viviam nossos antepassados, até o cotidiano imagético da mídia, da publicidade e propaganda, da TV e da internet. Enquanto ocupa esse lugar, a imagem influencia, induz e organiza sensações e opiniões dos seres que dela partilham cotidianamente em suas relações. 

A comunicação visual é física, concreta, atributos estes que proporcionam a ela um considerável potencial criador e comunicador. A linguagem iconográfica, tal como a linguagem visual, é portadora de múltiplas mensagens. Da mesma forma, tal como uma linguagem iconológica1, sistematiza uma combinação de sentidos gerando símbolos que, ao vê-los, permeamo-nos por seus significados, assim como no ato de ouvir algo que fora dito. 

Muitas vezes, para reconhecer e interpretar as imagens visuais, importamos o discurso verbal. Logo, a separação dessas duas dimensões – visual e verbal – não é tão radical, porque geralmente, quando lemos uma imagem, usamos palavras para expressar o que sentimos. A linguagem verbal necessita, na maioria das vezes, ser esmiuçada, refletida, interpretada, analisada, para ser compreendida. O mesmo não acontece de forma tão consciente com a linguagem visual, com os sentidos que ela gera. Como somos imagem desde a origem – nascemos e já vemos o mundo, o interpretamos a nossa maneira, baseados na experiência que carregamos –, estamos acostumados com ela. Ela tende a se naturalizar e a naturalizar as experiências e objetos sociais que se interpõem no horizonte dos sujeitos. Desse modo, até parece que não precisamos esmiuçá-la, interpretá-la, analisá-la ou refletir sobre nosso entendimento ao vê-la. Mas vários estudos sobre seu uso e/ou sua utilização, em diversas pesquisas e para diversos fins, mostra o contrário: quando mais refletimos e analisamos as imagens, para além do uso figurativo, contemplativo ou complementar que elas proporcionam, mais elas nos adentram em possibilidades de ressignificação à construção histórica.

Essa ideia geral sobre nossa percepção imagética oferece poder à imagem para sobrepujar-nos. Assim como a linguagem verbal pode intencionar, construir e/ou influenciar opiniões, credos, ideias, pensamentos, etc., a linguagem visual o faz o tempo todo. A linguagem, seja imagética ou verbal, pode remodelar certos paradigmas, e o faz de forma muito acirrada quando se articula a outras linguagens.

A integração entre linguagem verbal e não verbal ocorre na leitura de imagens. Essa leitura se inicia com um simples olhar e pode chegar até a sua produção, resultando em modos de comunicação, que envolvem diversos processos cognitivos e afetivos. Frequentemente a mensagem linguística está ligada à imagem. A letra em si é uma imagem, organizada em padrões simbólicos que, sistematizados em conjunto, comunicam as mais complexas mensagens. As imagens que não são letras utilizam outro modo de combinação, que pode ou não se intensificar, dependendo da relação que o sujeito constrói com elas.

É impossível estarmos longe e/ou fora das imagens, já que estamos o tempo todo sendo influenciados por elas; já que se somos também imagem, assim que o outro nos vê. Entretanto, geralmente não nos atentamos ao texto imagético com a mesma importância que ao texto escrito.

O ato de ver é constante, mas muitas vezes a imagem permanece invisível por parte comum do todo, por estar tão presente. Estamos constantemente vendo, independentemente de estarmos lendo. O ato de ver precede e é simultâneo à leitura. O ato de ler uma imagem é diferente do ato de ler uma palavra. Para entendermos um texto verbal, precisamos aprender a combinar certos signos em grupos para indiciarmos símbolos que, em conjunto, geram mensagens. A imagem aparentemente se apresenta pronta. Todavia, apesar da imagem ser apresentada já construída, assim como o texto verbal, o texto imagético também é reconstruído na mente do sujeito, em função de seus meios de bordo. Para uma perspectiva inadvertida, ler uma imagem, em tese, seria o mesmo que vê-la. Mas ler, mais do que apenas ver, significa sentir, interpretar, entender, e refletir sobre o que se vê e se entende da mensagem imagética. E fundamentalmente, quais as intenções daquelas mensagens ali presentes.

Alguns artistas discordam em parte desse argumento, pois subentendem que, ao ver, já sentimos algo, e esse sentido já é uma leitura. De fato, concordamos com essa posição, embora encaremos aqui o termo leitura como algo mais complexo, no sentido de Aumont (1999 e 2008), Dubois (1993 e 2008), Samain (1998 e 2010), Baxandall (1991), Kossoy (1998 e 2001), Fatorelli (1998), Bosi (1988), Kellner (1995), entre outros, que contestam essa simplicidade da leitura da imagem e predizem que a mensagem que vemos na imagem, muitas vezes, é mais complexa do que sentimos e entendemos a priori. Esses teóricos colocam que, às vezes, para entendermos uma mensagem imagética, precisamos interpretar nuanças dessa imagem que não estão tão claras a nossa percepção sensorial básica, primeira.

Logo, interpretar é uma atribuição da leitura, num nível diferente do simples olhar. Se olharmos uma palavra desconhecida para nós – por exemplo: NAAFATSI – percebemos que é possível ver a imagem da palavra. Mas, a princípio, não conseguimos entender sua mensagem de palavra2. Esse anagrama demonstra a diferença básica entre ver-sentir e ler-interpretar-sentir. Ao entender que o anagrama se trata de uma palavra de língua portuguesa, brasileira, partimos para possíveis recombinações organizacionais e, enfim, ao reescrevê-la algumas vezes, podemos lê-la como FANTASIA. Quando a vemos, sentimos algo. Quando a lemos, interpretamos, refletimos sobre ela, e sentimos diferente3.

Dessa forma, acreditamos que para entendermos a mensagem da imagem – o seu significado em si e seu significado contextual4 – precisamos entender sua contextura (FOUCAULT, 2003), suas condições de produção, e sua intenção. Assim, como percebemos a imagem ao vê-la, podemos entendê-la ao lê-la. Nesse sentido, podemos (re)entendê-la ao escrevê-la, ao desenhá-la, ao fotografá-la, ao ilustrá-la, pois todos esses atos de produção de imagem trazem agregados intenções, objetivos e mensagens primárias, intermediárias e complexas, sendo que estas últimas nem sempre são percebidas por nós quando apenas vemos as imagens.

Uma imagem – seja pintura, fotografia, palavra, etc. – sempre representa algo. Essa representação condiz uma realidade e uma não realidade imediatas, que podem ou não carregar mensagens específicas que conduzem à interpretação para uma ou outra direção. Cada linguagem imagética específica possui uma lógica exclusiva para estudo e análise de seus atributos e sentidos. O ato de produzir a imagem nos proporciona outro potencial interpretativo porque participamos da lógica de sua intencionalidade. Essa lógica geralmente explica o processo de significação das funções comunicativas da imagem. 

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NOTAS 
1. Os conceitos de iconografia (grafia, escrita - de ícones) e iconologia (logia, estudo - dos ícones) serão explicados e aprofundados no próximo post. 
2. É possível entender o que nós queremos, enquanto autores, ao colocar essa palavra nesse contexto. Mas não é possível entender o sentido de palavra em si.
3. Paulo Freire não toma o termo “admirar” no sentido de ficar absorto ou atônito diante de algo, nem de se entusiasmar e/ou se maravilhar. Para ele, “ad-mirar”, com raízes latinas, é um termo composto pela preposição ad que indica direção, e o verbo mirar, que significa ver. Ad-mirar é olhar em direção de, direcionar o olhar para o objeto de conhecimento como um objeto em si mesmo. E só a partir da reflexão sobre o objeto é que podemos entender sua mensagem e decidir se vale compactuar com ela (ESCOBAR & ALBERTON cf. STRECK; REDIN & ZITKOSKI 2010, pp. 24-25).
4. Significante e significado.
5. Modelo de quarto vazio ou caixa oca, onde a partir de um único orifício em uma das faces, fazia com que a imagem de fora fosse transferida para dentro da caixa, na face posterior à furada.
6. Entendemos por suporte, o material diverso (papiro, pergaminho, papel, pedra, vinil, disco magnético, película fotográfica, etc.) capaz de receber e conservar a inscrição de um texto. No contexto das artes, da produção artística, diz-se qualquer estrutura física que serve de base para a produção do trabalho artístico.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

APRENDIZAGEM LIVRE, EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE



A concepção de aprendizagem livre pressupõe a aprendizagem como perspectiva de mudar, de se transformar, a partir e com a experiência, e não só a partir de uma teorização exacerbada da realidade.

Ela pressupõe que nossas ações criadoras e transformadoras são fruto das nossas emoções, e que o saber, por si só, não garante a fluidez dessas emoções, por isso muitas vezes sabemos, mas não fazemos.

Existe certo tipo de emocionar que pode fazer uma sociedade inteira acatar certo tipo de aprendizagem, e não outro. Como bem nos lembra Humberto Maturana, “aprender não é apreender com o mundo, mas sim mudar com ele”.

Quando não mudamos com ele, facilmente acatamos as emoções estabelecidas pela convencionalidade normatizada, polarizada, secularizada e estagnada. Quando mudamos com ele, mudamos nós mesmos, e nos colocamos para além do bem e do mal.

Nesse sentido, a aprendizagem livre busca desconstruir a relação ensino-aprendizagem, preferindo a aprendizagem mútua. Coloca-nos no lugar de aprender com o outro, enquanto ele aprende conosco, diluindo as relações de poder sobre o outro.

Quando não nos colocamos acima ou superiores ao outro, torna-se mais fácil não podá-lo em sua criatividade.

Substituímos assim nossa relação de poder por uma relação com a potência.

Carla Ferro nos instiga a entender a aprendizagem livre como a adoção de um novo tipo de emocionar, baseado na confiança na vitalidade das relações humanas, redefinindo nossa fundação biopsicológica fundamentada no binômio cristão do medo e da esperança que, na verdade, não são opostos:

“Medo e esperança não são emoções que criam modos distintos de agir, mas engendram um mesmo modo de ação porque, tanto um como o outro representam uma garantia, alguma coisa que está à frente, no futuro, à espreita”.

Saindo desse lugar de disputa entre o medo e a esperança, percebemos que ambos acabam tendo a mesma função no processo de criação:

“É sempre uma ameaça e uma promessa, e o medo governa nossas ações a partir de um futuro hipotético. Se você não estudar, você não vai ter um bom emprego, não vai ser ‘alguém na vida’, etc.; enquanto a esperança faz a mesma coisa: se você trabalhar muito, você vai ser promovido, você vai ter mais chances, ser mais importante, ter mais dinheiro, etc. Assim, permanecemos num mesmo ciclo”, diz ela.

Dessa problemática, inferem-se preocupações sociais paradoxais da atualidade, erigidas por um mecanismo biopolítico de profundo aprisionamento (de si em si, e de si no outro) da liberdade do pensar e do agir.

A dualidade (medo e esperança, certo e errado, feio e bonito) é nuance de uma construção ética e estética específica, mas não corresponde a toda a realidade possível.

Todas essas nuances são, na verdade, faces de uma mesma moeda: somos todos certos e errados, feios e bonitos, medo e esperança, bons e maus, dependo das demandas do tempo-espaço de cada instante.

Tais processos de polarização provêm de uma estrutura secular da Educação, que nos estagna.

E é difícil sair disso porque a maioria das perguntas que hoje se faz à Educação convencional vem de uma estrutura impossível de transpor, pois a discussão em torno dessas perguntas produz um determinado tipo de crítica (teorização) em que o próprio modo de organização dessa crítica está fadado à superficialidade.

Muitas vezes o papel da educação não está, de fato, sendo questionado, mas continua seguindo o mesmo padrão existencial de conduta binário, dual, apesar da multiplicidade dos objetivos, objetos, e das diferentes formas de funcionamento das instituições e de suas práticas inovadoras.

Quando não questionamos de forma real o papel da educação, não lidamos com o próprio desenvolvimento do ser em sua acepção integral, em suas diversas esferas existenciais.

Intuição, emoções, sentimentos são relegados, mantendo-nos construtores de uma realidade e aprisionadores de nós mesmos, numa estrutura moral inoperante, que produz teoria em vez de ação, como nos lembra Nietzsche.

Separar, transformar, transmutar... intuir... aprender a como lidar com as emoções e com os sentimentos... seria isso trabalho educativo, ou trabalho espiritual?

Onde está a fronteira entre religião (polarização e secularização da educação), educação (relação ensino-aprendizagem) e desenvolvimento espiritual (percepção do ser como parte de um todo integrado em si, ao espaço e ao outro)?

Onde eles se misturam?

Até onde o sujeito mesmo da educação é o próprio sujeito mesmo?

E no mundo, as pedras, as plantas, os animais, o mar, o vento, a chuva, o sol, também não educam?

Fazemos parte de uma mesma condução de energia universal. Problematizar a educação, por si só, não é suficiente.

Os processos de aprendizagem livre nos propõem essa percepção: de que educar-nos de forma transformadora é mais do que transformar o mundo. Torna-se, pois, uma tarefa de transformação de nós mesmos, de nossa forma de ser e agir internamente, resgatando a força criadora das diversas potências espirituais do nosso ser, adormecidas e/ou entorpecidas pela normatização, pelos automatismos, e pelos reducionismos sociais.

Ao entendermos a educação como processo espiritual, começamos a repensar nossas respostas. Mas não em função das mesmas perguntas, e sim em função de novas perguntas, genuínas; de perguntas que, na verdade, ainda não têm respostas.

E essa renovação das perguntas parte, possivelmente, de uma realidade de mundo onde há confiança nas relações humanas, na vitalidade das relações humanas.

E é a partir dessas relações, dessas novas relações, que é possível pressupormos novas formas de ver, pensar e fazer a aprendizagem, a partir da confiança no que você é; no que o outro é; no que o mundo é; e, mais ainda, no que somos todos juntos.

terça-feira, 2 de julho de 2019

O BRINCAR LIVRE E A RECONFIGURAÇÃO EXISTENCIAL DO SER


Segundo alguns teóricos da educação, a crise dos sistemas de ensino provém do fato de não se saber mais que finalidades a escola convencional deve cumprir e para onde deve orientar suas ações, num mundo tão complexo, tecnológico, e cheio de novidades. O que nós percebemos desse contexto é que certos processos da modernização têm produzido uma crise de sentido que vem afetando essas instituições, outrora encarregadas de fornecer padrões de experiência aos indivíduos, bem como uma coesão intersubjetiva.

As escolas estão perdendo suas crianças porque existe uma força simples de ação da criança que, na prática, foge desses padrões. Essa força é o brincar, que a escola renega cada vez mais cedo, numa sociedade que envelhece cada vez mais cedo suas crias. E embora muitas vezes esse brincar funcione como reprodução de certos padrões de experiência, ele os ressignifica e os reconstrói o tempo todo, a partir das próprias demandas contextuais do instante e dos participantes desse instante, presentificando as crianças.

Então, se o problema da educação está na esfera dos processos de subjetivação pautados no paradigma do poder normatizado e proferido como verdade, isso faz com que a educação convencional autorize e legitime o governo do outro, enquanto molda a ação e a imaginação das condutas éticas e estéticas da criança.

E enquanto vamo-nos tornando adultos, repetimos, com as gerações posteriores, o mesmo que fizeram conosco. Destruímos a liberdade do brincar, com os padrões dos desenhos animados, dos brinquedos industrializados e acabados. Aí a imaginação da criança se fixa nesses produtos, os reproduz, ao tempo que substitui suas próprias criações pelas que já existem, finalizadas e construídas por uma indústria que, na maioria das vezes, não está interessada na pluralidade da imaginação, já que imaginar por si mesmo é um pleno exercício de liberdade.

Assim, a fantasia da criança é instigada a produzir ficção científica. Ela praticamente só experimenta a poética da surpresa do não planejado através do seu encontro com o insignificante, com a tolice ou com o fracasso: a pedra lançada ao vento que cai na casa do vizinho; o pisotear o lamaçal na rua que fica da chuva; a quebra da ordem, do programado, ou da máquina, acabam sendo os únicos impulsos da fantasia criativa. “Dar mancadas” torna-se a única poesia disponível nesse contexto, como diria Illich.

Ao destrinchar esse problema, percebo uma devastadora necessidade de reconfigurarmos todas as nossas relações com o brincar, a partir de uma desconstrução mesma do sujeito que somos, pela via de um movimento de redefinição ética e de uma desconstrução identitária profunda.

Nesse sentido, o brincar livre funciona como práxis (des)educativa, que se estabelece através de uma doação existencial do ser, matriz para uma convivencialidade ético-espiritual consigo, com o outro e com o mundo, reconstruindo, a partir da compreensão das instâncias formativas mais profundas de nós mesmos, nossa criança interior, a partir de um processo de (re)criação do nosso próprio processo de adultização.

Por isso a brincadeira livre é tão fundamental e importante: ela é criativa, e se apresenta como práxis de vivência latente que se dá através de experiências que desembocam num mergulho de transcendência das instâncias bases da fundação do ser no instante de nossas vidas, e assim reconfiguram nossa forma de ver e sentir o mundo, a partir de um movimento de realinhamento constante de si.

O brincar livre emerge nas relações à medida que os indivíduos priorizam a aprendizagem livre, sendo, estes mesmos indivíduos, os principais autores e atores no processo da tessitura de (novos!) saberes, e na construção de conhecimentos necessários naquele instante de vida, sem depender de parâmetros específicos industriais e curriculares.

Logo, o brincar, nesses termos, inscreve-se como exercício de criação de novas formas de emocionar, pensar e fazer as relações, em si, com o outro e com o mundo.

Por isso acredito que se realiza como movimento político de re-existência a diversas formas de assujeitamento derivadas da educação formal, enquanto foge dos padrões de conduta instituídos como política de vida aceitável ou curriculável, e que por isso talvez seja constantemente excluído da esfera pública e cerceado em seus modos de existência.

A problematização derivada de sua ação busca ampliar e amadurecer outras reflexões sobre o lugar da própria criança no mundo (assim como da nossa criança interior), num movimento de (des)educação e de construção coletiva.

Logo, entendo os múltiplos espaços do brincar livre como espaços de condição de possibilidade para diversas formas de realinhamento de si, porque são espaços que podem reconstruir crenças, hábitos e padrões convencionalizados.

Do ponto de vista da governamentalidade, torna-se uma atitude revolucionária, pois se manifestada na ação de condutas éticas autônomas, observáveis no vínculo entre o dizer e o fazer, que se torna critério de ação, enquanto buscamos nos referir a outra forma de si nas relações de poder. Essa forma de si gestada no brincar livre perfaz as relações, estabelecendo-as para além do sentido dialógico, referindo-se a uma estilística da existência, precedido através do resgate de si mesmo.

Por tanto, rompemos com o paradigma do poder, a partir do seu processo de desconstrução, resgatando um paradigma da potência, a partir do afloramento das potencialidades da criança, cuja forma de lidar com/para/na vida se firma quando acionamos nossos atos criadores, derivados da liberdade e criatividade que experimentamos.

Esse exercício de se livrar de certa normatização e regulação gera um movimento de autoconhecimento que nos faz voltar às profundezas formativas das crianças de nós mesmos, a fim de nos entendermos em nós mesmos e, consequentemente, o nosso papel no mundo.

Brincare, e verás!