quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A escola pública e o paradoxo da "Pedagogia dos Projetos"





Estamos experienciando um abissal paradoxo nas escolas públicas estaduais de Pernambuco nos últimos seis anos. Uma pré-disposição do governo para desenvolver uma espécie de “pedagogia de projetos”, via aplicabilidade interdisciplinar, estipulou um horário integral para formação ética e profissional dos cidadãos nas escolas. Programa que poderia desenvolver plenamente a capacidade cognitiva de alunos e professores, por exercer uma prática de desconstrução e reconstrução do conhecimento tradicional nas escolas, se não fosse o grande problema das metas indiciárias. Como bem vemos, existem índices que precisam manter uma função quantitativa para conquistar investimentos de setores internacionais à educação pública brasileira. O Banco Mundial, por exemplo, é quem mais investe em nossa educação, em troca de índices crescentes a todo custo, em curto prazo, visando desenvolvimento básico para criação de mercado produtor e consumidor. Não seria de todo ruim, se não “esquecessem” que quem trabalha com educação, mexe com “gente”, seres humanos; cultura; modos de ser; representações; que não se transformam em curto prazo, como querem as metas e os índices. Um ano (365 dias) para a educação, é o mesmo que poucos minutos para a engenharia ou alguns segundos para o teste de laboratório. É muito pouco tempo (perdoem o paradoxo) para criar resultados! Gera então um mal estar entre as escolas (gerência e professores, acusados de incompetentes), GREs e Secretaria de Educação, todos amarrados num modelo populista e neoliberal de desenvolvimento, disfarçado de socialista. Um abuso. E quem mais sofre com esse modelo: professores e alunos, que estão sendo cada vez mais escanteados, enquanto “todos” vão sendo “aprovados”, e os números crescendo automaticamente nos noticiários da TV. O professor faz um horário integral, mas tem que compensar déficits básicos escolares nos horários que deveriam ser dedicados aos projetos (problemas como alfabetização de alunos que já deveriam saber ler e escrever – sim, existem alunos no ensino médio que são analfabetos funcionais –, e problemas administrativos, só pra citar alguns exemplos). E embora tenha havido uma gratificação financeira (suficiente?) e uma relativa melhoria na estrutura física para o desenvolvimento do trabalho (é bom que se diga), problemas de cunho ético (o que se está fazendo na escola?), epistemológico (que conhecimento é esse que está sendo construído?), e psicológico (pressão administrativa, profissional) estão crescendo. No mínio, um verdadeiro paradoxo.



sexta-feira, 20 de abril de 2012

COM QUE ROUPA EU VOU?

AS GAVETAS DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA 
E O DILEMA DO PROFESSOR


Professores de História parecem constituídos de gavetas. E que dentro de cada uma está a solução para o que se deve fazer, da forma certa e no momento certo. Drástica ilusão. Nós, professores de História, parecemos mesmo perdidos. Não que se perder seja de todo ruim. Perder-se também é caminho, já dizia Clarice. Mas, antes que percamos nossos alunos (ou pior: antes que as escolas os percam), temos que repensar algumas questões fundamentais: a construção do conhecimento e seu valor contemporâneo, assim como o método para lidar com ele na sala de aula.

Uma das características da sociedade contemporânea é o papel central do conhecimento nos processos de produção, ao ponto do qualificativo mais frequente hoje empregado ser o de sociedade do conhecimento. Estamos assistindo à emergência de um novo paradigma econômico e produtivo no qual o fator mais importante deixa de ser a disponibilidade de capital, trabalho, matérias-primas ou energia, passando a ser o uso intensivo de conhecimento e informação.

Atualmente, as economias mais avançadas se fundamentam na maior disponibilidade de conhecimento. A vantagem comparativa é determinada cada vez mais pelo uso competitivo do conhecimento e das inovações tecnológicas. Esta centralidade faz do conhecimento um pilar da riqueza e do poder das nações, mas, ao mesmo tempo, encoraja a tendência a tratá-lo meramente como mercadoria sujeita às leis do mercado e aberta à apropriação privada.

Ao se tornarem forças produtivas, o conhecimento e a informação se integram ao próprio capital, que começa a depender desses fatores para a sua acumulação e reprodução. À medida que a hegemonia econômica pertence ao capital financeiro e não ao capital produtivo, a informação prevalece sobre o conhecimento propriamente dito, pois o capital financeiro funciona com a riqueza puramente virtual, cuja existência corresponde à própria informação (BERNHEIM & CHAUÍ, 2008).

Essa realidade perpetuada nas esferas sociais dispõe uma reformulação do tempo e do espaço gerada pela ascendente influência das TICs e da internet nas relações sociais, que reorganiza a noção espaço-temporal, ao mesmo tempo em que o consumo desenfreado é estimulado pela grande mídia, atingindo diretamente a constituição do sujeito, sua maneira de ser e viver no mundo, transformando sua personalidade e ditando os limites da sua relação com o outro e com seu espaço. 

Esse panorama faz com que a História busque se constituir, tanto em níveis teóricos quanto metodológicos, em busca de uma História do Presente (século XX) e, mais especificamente, de uma História Imediata (agora), transformando diretamente a metodologia do ensino da disciplina. Desde a Nova História, até a Microhistória ou História em Migalhas, que destrinchou o conhecimento Histórico em funções fragmentadas, debate-se sobre a necessidade do papel totalizante do saber histórico em estabelecer alguma “relação orgânica com o passado público da época em que vivemos” (HOBSBAWN, 1995), papel esse que, outrora, levado ao extremo, transformou tudo em História.

A perspectiva cultural do século XXI inverteu essa conformação a partir dos estudos culturais, das perspectivas antropológicas e da influência da literatura, acoplando ao discurso historiográfico, uma nova historiografia produzida que, em alguns momentos se prendeu a constatações e narrativas sobre um cotidiano despolitizado, desvinculando-se da própria consciência histórica que, acima de tudo, pressupõe a definição ética do historiador perante o tempo. Logo, essa História dita Cultural, característica, vem iniciando uma extrema-ação do presente, em contrapartida à História tradicional dos Estados e dos ciclos econômicos, fundantes do tempo linear e das datas comemorativas dos personagens e heróis nacionalistas, assim como em detrimento das características fundantes da História dos Annales e da Nova História. Contudo, a História Cultural propriamente dita, em sua perspectiva epistemológica, nunca pretendeu desfazer qualquer relação com o passado público de épocas anteriores. Essa perspectiva surgiu da interpretação histórica de um momento que se constitui na função do conhecimento enquanto mercadoria, num sistema que trata qualquer produção no escopo do preço de mercado, referente à demanda de consumo, momento característico dos países emergentes.  

Essa perspectiva imediatista da História é chamada de presenteísmo, e se caracteriza por medrar a História numa função meramente informativa, deturpando o objetivo da História, de relacionar tempos e espaços em uma função narrativa, diferente do que propõe a perspectiva epistemológica da História Cultural e mesmo da Escola dos Annales e da Nova História. Essa perspectiva imediatista levada ao extremo desloca a função da construção histórica para uma construção jornalística, desvinculando o trato com estruturas temporais de um movimento do todo, seja político, social ou cultural. Esse raciocínio levou à crise do paradigma da História que, por sua vez, mergulhou no buraco sem fundo do mal-estar da pós-modernidade, levando teóricos, pesquisadores e professores a constatar o “fim da História”, em detrimento do “tudo é História”.




 
Logo, professores-pesquisadores da área da educação, do ensino de História, influenciados por conhecimentos constituídos da Filosofia Histriográfica grega, da Didática da História alemã, da História Cultural francesa, da História Política inglesa (chamados de historiadores da esfera do político), e pelos movimentos sociais contemporâneos mundo afora, assim como pela perspectiva de uma História Social caracterizada por teóricos do oriente médio, norte da África e América Latina, vem percebendo a necessidade de não extremar polos conceituais e categóricos em função do ensino, como se o conhecimento construído na sala de aula fosse uma gaveta separada do conhecimento holístico. 

Considerando a grande crise da História tradicional, linear, dos grandes personagens e Nações, e a atual luta contra a perspectiva histórica materialista e marxista de marca majoritariamente político-econômica, professores hoje debatem as necessidades de reencontrar um caminho para dentro da sala de aula, em função do movimento do mundo de ontem e hoje, considerando ainda a perpetuada influência dos mercados editoriais dos livros didáticos que, por sua vez, ditam os caminhos do conhecimento disseminado e construído nas escolas.

Considerando a educação enquanto projeto simultaneamente político e filosófico, cuja compreensão não cabe exclusivamente ao âmbito da racionalidade técnica ou científica (MENDES, 1983), professores vêm debatendo sobre a necessidade da História se pautar em valores que estruturam o ser e a cultura do homem na sociedade. Surge então a necessidade de conectar características da História Cultural a atributos da Nova História e da História Social, enfatizando a importância da História Política e, quiçá, pensando nos âmbitos positivistas que por ventura contribuam metodologicamente para o ensino de História. Essa “miscelânea historiográfica” é efeito da abrangência de uma cultura mais que dialética, de uma cultura multi, pluri e interdimensinal, que informa, no mínimo, uma ação de descoberta e de transcendência, considerando-se enquanto vontade e ato político. Logo, não há como separar cultura de política, assim como não há como falar de política sem desconsiderar as produções culturais e cotidianas.

A partir dessa compreensão, filósofos, historiadores e educadores encetam pensar e repensar constantemente a História da/na sala de aula. Dentre as várias reflexões derivadas desses autores e dos textos sobre teoria e ensino de História hoje produzidos, o “novo professor de História” se situa entre a demasiada preocupação entre o efêmero e o meramente cronológico, e/ou entre a proposta de descontruir a clássica e tradicional História linear e política em função de uma História cultural e do cotidiano.

Para que não precisemos negar e/ou substituir saberes e conhecimentos importantes, ou escolas e correntes (como diriam os mais clássicos) significativas à construção do saber e da cultura históricas, entendemos que, talvez, uma solução passível desse debate para a atual constituição das salas de aula de História, seja a de mesclarmos possibilidades espaço-temporais em função da demanda momentaneamente local (necessidade contemporânea), sem esquecer a política geral e as características totalizantes do pensamento e das práticas político-sociais. Atentar para temas como cidadania, por exemplo, permutada à historiografia e à aula de História, consiste numa função precípua de sistematizar e reconhecer esferas micro e macro (“o educando é ator ou produto da história?”, pergunta-nos Circe Bittencourt, ao debater a questão do termo cidadania em relação à História).

Um exemplo dessa metodologia do acoplamento de saberes está no método tripartido de Fernand Braudel. Braudel (1978, 1987) talvez tenha sido o historiador que levou ao extremo o método da Escola dos Annales, acoplando ao fazer Histórico, nuanças micrológicas, cotidianas e locais, sem se esquecer do macro-econômico e político, e das características culturais gerais provenientes dos grandes e lentos movimentos geológicos. Braudel divide a vida econômica no capitalismo em três instâncias: a primeira é denominada de “vida material”, e se refere às atividades cotidianas, rotineiras, habituais e inconscientes, em que a relação do homem com as coisas é orientada pelo seu valor de uso, não pelo seu valor de troca. Nessa instância é possível encontrarmos os espaços para a produção subjetiva e identitária individuais. A segunda instância é a “economia de mercado” e diz respeito à vida econômica em si, às trocas rotineiras (e não apenas as trocas esporádicas), à produção para o mercado (e não simplesmente a troca de excedente do autoconsumo), à relação entre pessoas e coisas baseada no valor de troca. Nessa segunda instância, Braudel distingue dois níveis da “economia de mercado”: um “menor”, composto pelos mercados, lojas e vendedores ambulantes, e um “maior”, formado pelas feiras e bolsas, onde o volume transacionado e a complexidade institucional são maiores. Esta instância é marcada pela transparência das trocas e pela concorrência entre os agentes. É nessa instância que podemos verificar a produção do conhecimento gerada pelo sujeito em relação com seu espaço e com o outro. Aqui, a produção desse conhecimento gira em torno do meso-coletivo (nem micro, nem macro), que fundamenta a relação cultural, compondo a memória coletiva, intrínseca à constituição da memória individual, característica da primeira instância citada, numa relação direta com essa segunda instância (desconstrução do indivíduo e reconstrução do sujeito). E em terceira e última instância, os processos do sistema capitalista (hoje neoliberal), que não cabem incluir na “economia de mercado”, pois se baseiam numa forma específica de conduzir os jogos da troca, via políticas de dependência e blocos econômicos, em que mecanismos de mercado e extramercado são utilizados para obter a maior parte do excedente e se responsabilizar pela reorientação da produção cultural. É o que Braudel chama de capitalismo: uma esfera de circulação diferenciada, que fica no topo da hierarquia das trocas. É onde se encontram as trocas desiguais, em que a concorrência (característica essencial da “economia de mercado”) tem um “reduzido lugar”. Nessa última instância, a produção do conhecimento é considerada resultado só e somente só coletivo. Ou seja, tudo o que se caracteriza oficialmente enquanto conhecimento é derivado final das relações de poder e dos discursos que dizem, no momento, o que é a cultura, o que é o saber e o que é a ciência. Esses discursos são “aceitos oficialmente” porque são sistematizados e disseminados pelos donos do poder do discurso (ARIENTI & FILOMENO, 2004, p.89, itálicos meus). 

Essa sistematização Braudeliana faz pensar num sistema histórico que talvez possa levantar temas que subsidiem tanto a História Positivista, quanto a Nova História, assim como a História Cultural, ao construir um raciocínio Histórico em parâmetros locais, gerais e totais; micro, meso e macro; cotidiano, nacional e global; linear, circular e pendular; sem excluir o que já se produziu de conhecimento histórico até aqui, conhecimento esse que fundou a cultura história contemporânea, evitando a mera substituição do novo pelo velho, do arcaico pelo moderno, do tradicional pelo revolucionário.  

Frente às inimagináveis possibilidades sobre o pensar e fazer História, considerando autores franceses, alemães, ingleses, latino-americanos, do leste europeu, do oriente médio e norte do continente africano, vários brasileiros já debatem essas questões. Maria Monaco Janotti considera que esse talvez seja o momento para reconsiderar a História política e institucional sob a ótica de outros parâmetros, assim como Circe Bittencourt observa a necessidade de uma reconfiguração do raciocínio histórico (assunto que tratei no texto “Que História é essa?”, aqui nesse blog), assim como considero que a Didática da História muito pode contribuir no debate acerca da História dentro da sala de aula.  

Exatamente por haver incontáveis possibilidades para se pensar a História, mais do que nunca se deve atentar à qualidade e à credibilidade das fontes e das referências que constituirão a cultura histórica. A frase “nada vem do nada” é primorosa nesse sentido, porque imputa a noção de que a História não é mero “terreno do interessante” do mundo privado e do “imediato” do cotidiano. Estes crescem em relação direta com a redução das atividades da vida pública e à consciência da cidadania, como nos disse Hannah Arendt (cf. JANOTTI, 2009), podendo levar, como nos anos de 1920 e 1930, à privatização do próprio Estado e a ditaduras fundamentalistas ao estilo nazifascistas, ou ao estilo dos anos de 1960 no Brasil. Todo acontecimento tem uma ligação com algum outro tempo e espaço. Esquecer-se disso é esquecer-se da constituição de nossa identidade e de nossa memória, logo, é desentendermo-nos e aceitarmos tudo o que vier pela frente, seja generalizante ou excludente. 

O conhecimento histórico específico não está guardado separadamente em gavetas, como se não houvesse relação entre seus conteúdos, cuja abertura de uma ou outra se faz dependendo da situação. O conhecimento histórico é um móvel holístico, contendo em si tempos e espaços característicos. Com uma gaveta aberta e outra fechada, é como sair sem uma peça de roupa no corpo: nu em parte, incompleto no todo.




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REFERÊNCIAS


ARIENTI, Wagner Leal, FILOMENO, Felipe Amin. Economia Política do Moderno Sistema Mundial: as contribuições de Wallerstein, Braudel e Arrighi. UFSC – Dpto. de Economia, UFSC, 2004.

AUED, Idaleto Malvezzi & CAMPANA, Samya. Concepção de História em Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein: uma análise marxiana. Revista eletrônica Cadernos de História. UFOP – Ano I, n.º 2, setembro de 2006, disponível em .

BERNHEIM, Carlos Tünnermann & CHAUÍ, Marilena de Souza. Desafios da universidade na sociedade do conhecimento: cinco anos depois da conferência mundial sobre educação superior. Brasília: UNESCO, 2008.

BITTNECOURT, Circe. Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de História. IN: IN: BITTENCOURT, Circe (org.). O Saber Histórico na Sala de Aula. 11. ed., 3ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2009.

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1978.

DALI, Salvador. Homem com Gavetas / Vênus de Milo com Gavetas / Figura com Gavetas. IN: Gênios da Arte – Dalí. SP: Girassol; Madri: Suseta Ediciones, 2007.

JANNOTI, Maria de Lourdes Monaco. História, política e ensino. IN: BITTENCOURT, Circe (org.). O Saber Histórico na Sala de Aula. 11. ed., 3ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2009.

MENDES, Dumerval Trigueiro. Existe uma filosofia da educação brasileira? IN: MENDES, D. T. (coord.). Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983 (pp. 60-62).



quinta-feira, 12 de abril de 2012

Que História é essa?








A História ensinada nas escolas hoje é baseada em modelos de construção social pró-nacionalismo. Ufanismo perplexo e característico de tempos políticos que primavam por um ensino nessa medida. Três tempos, especificamente: a Colonização, a chamada Era Vargas e a Ditadura Militar. E a partir da ditadura militar, constituiram-se no Brasil, as principais lacunas na discussão sobre a Teoria da História, que se refletem hoje no seu ensino.

A Grande História (Oficial, que se diga) ensinada hoje nas escolas ainda gira em função dos grandes acontecimentos dos homens brancos de classe média e aristocrata, dos personagens heróis de um mito de constituição nacional, que é reflexo da demanda dessas épocas.

Hoje, grandes pensadores da História, principalmente escritores da literatura, assim como alguns professores (aqui me incluo!) tratam, de uma forma ou de outra, da finalidade de ensinar História, fundamentada em detrimento do que “não se historicizou”. E é claro, muitos de nós deixamos de lado a reflexão e a problematização da História, em função das escolhas de quem detém o poder de disseminar o discurso histórico.

Então hoje eu me pergunto: num mundo onde tudo voa, onde o passado é ontem, onde o futuro é agora, onde o movimento do tempo e do espçao se fundamenta aos efeitos da Internet e das Tecnologias da Informação e Comunicação, e de tudo o mais que altera constante e profundamente a noção de tempo e espaço dos sujeitos... Em tempo desses, é coerente ensinar nas escolas uma História fundamentada nas demandas de tempos em que o objetivo era decorar nomes e datas com objetivo de exaltar personagens locais e nações específicas? É coerente ensinar uma História que não problematize o mundo?

Porque é isso que se faz na grande maioria das escolas públicas. Falo isso por experiência própria: poucas são as escolas públicas que tenho pesquisado que não tratam a História como uma caixa de verdades imutáveis, apesar das propostas curriculares nacionais estarem paradoxalmente pregando a necessidade da interdisciplinaridade e de outros pontos que abrem lacunas acerca do ensino de História, como a história dos afrodescendentes. Estudei a vida toda em escolas públicas e falo por experiência própria: nelas a História sempre foi a mesma. Será que esse raciocínio mudou de 1996 pra cá, com a promulgação da LDB? Ou após a consolidação pública e coletiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais?  

Vários autores de História, assim como vários literatos, têm escrito sobre a História dos Esquecidos, a História dos Vencidos, do Cotidiano, a História “dos que não foram historicizados”, e todos esses escritores afirmam a necessidade de percebermos esses sujeitos, seus tempos e seus espaços na escola. Então, a discussão sobre o ensino de História hoje gira em torno de que, talvez, não precisemos mais ensinar nas escolas essa História das datas, dos heróis, dos homens brancos da classe média e aristocrata.

Por quê?

Porque a mulher também é personagem central na História. Porque sem os negros, a História não seria a mesma. Porque sem o povo, sem a massa, sem os excluídos, a História não se fundamenta. A escola não trata desse povo, que, paradoxalmente, é o povo que na maioria das vezes mais se relaciona ao público da escola pública. E porque nossas histórias não são oficiais? Por que os livros didáticos não focam essas nuanças da História? Onde estão as metodologias que utilizam fotografias, internet, excursões, o saber prévio do aluno? Ensinar a História dos livros didáticos é como dizer que o construtor de um grande edifício foi um engenheiro apenas, como se ele tivesse levantado aquilo tudo sozinho. Então na escola entendemos a História desse engenheiro, sua importância, a data de seu nascimento e da construção do "seu" edifício, o referenciamos e pronto: aí está a História oficial do povo.

E onde está O Brasil Construído Pelos Negros? O Brasil Erguido Pelas Mulheres? Fundação de São Paulo Pelos Operários Migrantes do Nordeste? Será que São Paulo seria a mesma sem os imigrantes nordestinos que a transformaram na grande cidade? E as colônias de Portugal e Espanha na África e América Latina, estavam vazias antes de chegarem nelas? Onde está A História dos Nativos E Sua Importância na Fundação do Brasil? Ainda bem que a literatura supre-nos, assim como a internet, as imagens e as TICs, que tem contribuído muito nesse sentido.

Baseando-me nessas colocações, pergunto-me: na escola, não seria mais óbvio, ensinar o aluno a pensar a História? em vez de meter-lhes na cabeça, datas e nomes? Não seria mais óbvio proporcionar ao aluno, espaço para entender a lógica do raciocínio Histórico? Entender sua relação de sujeito com seu tempo e seu espaço? A Didática da História trata disso, e alguns autores dos anos de 1970 pra cá, principalmente no Oriente Médio e norte da África (que relaciona História e seu ensino à transformação social), Alemanha e França, tem debatido o ensino da História noutras perspectivas. O Brasil tá começando.

Há uma necessidade premente de entender a História em um esvair-se da hermenêutica metodológica, seja essa metodologia como for, a exemplo de um esvair-se da hermenêutica da imagem, da literatura, do cotidiano, do sujeito que faz o mundo hoje. Entender a lógica do raciocínio histórico significa, enquanto Educação, uma pedagogia reflexiva, crítica e autônoma, que faz com que possamos ensinar nossos alunos a aprender, enquanto, consequentemente, aprendemos a aprender e a ensinar, afinal, ninguém está pronto, porque nenhuma cultura está completa.

Perceba que temos nas mãos um belo problema de epistemologia do ensino da História, porque não sabemos os efeitos de tomar uma posição dessas na sala de aula.