quinta-feira, 15 de maio de 2025

HISTÓRIA GENERALISTA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INSTITUCIONAL DA CRIANÇA NO BRASIL (PÓS) COLONIAL

 


Do ponto de vista das ideias pedagógicas e da aplicabilidade da educação no Brasil, num primeiro momento é possível dizer que aproximadamente durante todo o primeiro século de colonização, dois Planos de Instrução constituíram a chave central dos ideais pedagógicos no Brasil: o plano do Padre Manoel da Nóbrega e do Padre José de Anchieta. Nóbrega tentou conduzir a aplicação de uma educação no Brasil da época (considera-se o Brasil da época pequena parte do litoral de Pernambuco, da Bahia e de São Paulo a partir de 1533) fundamentado em aspectos estratégicos do agir sobre as crianças para chegar aos adultos. Os colonos que vinham de Portugal para o Brasil traziam crianças, a maioria delas órfãs, que por sua vez, estudavam com os nativos, uma educação puramente jesuítica de doutrinação via catequese, juntamente com o aprendizado básico de leitura e escrita do português (para os portugueses e nativos), somado ao aprendizado básico de agricultura e pecuária (só para os nativos). Um dos trunfos do plano de Nóbrega se constitui na grande interação entre as crianças nativas e as europeias. Em síntese, a ideia de Nóbrega é doutrinar a criança, para que esta, por sua vez, doutrine seus familiares, disseminando a verdade católica cristã e de subserviência dos nativos aos portugueses. Pensando nessa interação entre as crianças, dois colégios foram fundados: o Colégio dos Meninos de Jesus da Bahia, e o Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente. 


Eis a concepção pedagógica tradicional religiosa na versão católica da contra reforma, materializada na institucionalização da educação, já na segunda metade do século XVI, que se resume em formar os nativos para que estes sejam submissos à doutrina católica e conformados com os aspectos disciplinares da moral católica e intelectuais europeias daquele momento (a partir de 1549). Com o Padre José de Anchieta, a pedagogia tomou forma pelo teatro e pela poesia, que construíram a imaginação maniqueísta das crianças, num processo de doutrinação católica pela palavra, pelas diversas formas de discursos, através da condenação de práticas nativas que eram constantemente associadas ao demônio (Anhangá) e não a Deus (Tupã), simplificando e generalizando (homogeneizando) a cultura indígena.



Mas é mesmo a partir de 1599 que começa a acontecer certo processo de institucionalização da educação jesuítica nos pontos mais populosos do Brasil, sistematizado a partir da aplicação de uma legislação racionalista extremamente eurocêntrica, chamada Ratio Studiorum, organizada pela metodologia derivada do Modus Parisiensis, já trabalhando com crianças em classes, com a realização de exercícios escolares, mecanismos de incentivo ao trabalho escolar – como castigos corporais caso não trabalhassem, e com premiação, louvores e condecorações caso trabalhassem. Tal metodologia era fundamentada por uma base escolástica, pautada na ideia da leitura, repetição e memorização. Essa fundamentação, por sua vez, traduz uma visão do homem como ser constituído por uma essência universal e imutável – o homem é produto de Deus, já vem pronto, e sua educação deve desenvolver o lado cultural natural do homem e servir (a educação) para transformar o homem naquilo que ele já nasceu para ser. Logo, a função da educação seria moldar a existência particular e real de cada educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser humano.


O tradicionalismo pedagógico convertido em uma educação estrita e absolutamente religiosa se mantém até meados do século XIX, quando começa a coexistir com uma incipiente pedagogia que se pode chamar de leiga – fundamentalmente a partir da República, falaremos disso mais adiante –, embora ainda uma pedagogia que mantém seu núcleo funcional pautado no tradicionalismo pedagógico religioso (presente no Brasil nos últimos 300 anos). Quando da ascensão do iluminismo na Europa, procria-se uma racionalidade científica e um instrumentalismo filosófico, fundamentados através e a partir da lógica industrial europeia. Na prática, esse processo demorou pelo menos uns 150 anos para refletir diretamente na prática pedagógica no Brasil – só por volta dos anos do populismo e principalmente durante o regime militar que nossa prática pedagógica se estrutura numa função industrial de fato, disseminada Brasil a fora a partir de uma pedagogia co-criada na lógica estadunidense do mercado industrial e comercial (falaremos disso mais adiante). 


Com o fechamento dos colégios jesuítas, e com a coroa portuguesa agora presente no Brasil, aos poucos as crianças passam a ser redirecionadas em seus valores, deixando de lado a exclusividade religiosa na educação, fazendo com que essa religiosidade passe a coexistir com uma visão um tanto mais “esclarecida”, embora ainda extremamente despótica e, de certa forma, ligada aos valores morais religiosos, materializados na descendência consanguínea entre os nobres da corte do agora Brasil Império. A verdade é que as crianças, na prática, serviam como peso moeda nas negociações culturais, e os fortes processos de aculturação do povo nativo e de enculturação do jovem português que aqui morava fundou o modo de pensar das próximas gerações, no que se refere aos grandes centros povoados – praticamente 10% do território brasileiro. No restante, não havia escolarização nesses moldes; quando havia, ainda continuava na lógica da catequese, sendo este o principal meio educativo no território como um todo até aproximadamente meados do século XX. 


Após a consolidação do Império, é só por volta da segunda metade do século XVIII, é que uma espécie de educação básica começa a se consolidar institucionalmente no Brasil, consequenciada por uma espécie de “iluminismo brasileiro”, fortemente desenvolvido no período do Marquês de Pombal. Mas durante o reinado de Maria I, Pombal é demitido, e o retorno dos jesuítas às batutas escolares, assim como os párocos, retomam as rédeas da educação no Brasil através das aulas régias. Fica, contudo, no imaginário social e político dessa porção do Brasil, certas ideias pedagógicas leigas, sistematizadas através do ideário de uma educação laica e de um país cuja intelectualidade estaria racionalmente desenvolvida, pensamentos esses derivados daquele “iluminismo brasileiro” da época de Pombal. 


Mas é só com o advento da República (1889), até os anos 1930, que o ideário pedagógico no Brasil – agora uma maior parte territorial, formada inicialmente pelas urbes – começa a misturar ensino religioso com ensino leigo, influenciado fundamentalmente pelos pensamentos Liberais e Positivistas, consequências do capitalismo industrial e de mercado em polvorosa na Europa desse momento. Logo o interesse no Brasil dos finais do século XIX passa a ser estimular a laicidade do ensino, para que se formem logo escolas com modelo industrial, a fim de servir à nova lógica do sistema de mercado – isso tudo somente nos grades centros urbanos, que receberam as grandes levas migratórias campo-cidade durante o processo de industrialização inicial no Brasil. 


Nesse período de ebulição política (Iluminismo, República, migração campo-cidade, formação urbana) uma Assembleia Constituinte é convocada por Dom Pedro I, que estabelece um documento de instrução pública cujo ensino das crianças fica estabelecido a partir dos 9 aos 12 anos de idade – o chamado 1º grau de instrução comum. Contudo, o desenvolvimento de um ensino universitário sempre foi visto com mais urgência pela magistratura do Brasil, obviamente por questões sócio-políticas (cursos de Direito, e mais tarde Medicina e Engenharia), deixando que a prática do ensino das crianças na maior parte do Brasil continua e fortemente voltada e estruturada para e em torno da religiosidade.


Já a constituição de 1824 destaca em seu texto que agora deve ser gratuita a instrução primária para todos os cidadãos. Após essa outorgante, vários projetos políticos tentaram organizar uma sistemática para a educação no Brasil, que sempre ficavam barrados na impossibilidade prática de seu desenvolvimento, seja por questões de interesse político, seja por embates culturais. O que fica para as crianças, nesse momento, é aprender a ler, a escrever, e aprender os fundamentos básicos de aritmética nas escolas de primeiras letras, legisladas sobre um projeto de escola elementar, espalhando-se pelas cidades e vilas mais populosas do Brasil – ou seja, até 1827, não havia qualquer escola no Brasil que não fosse o grande centro político e, historicamente falando, até meados do século XX, praticamente não havia escolas no Brasil como um todo, comparado ao que temos hoje. Quando havia, os princípios da moral cristã é que fazia parte do currículo legal, juntamente com apender a ler e escrever, as 4 operações de aritmética, umas práticas de quebrados, decimais, etc. 


Em 1834 a competência para legislar sobre as escolas passa para as províncias, que estão ainda menos preparadas para essa tarefa. É nesse momento que se estabelece o princípio da obrigatoriedade do ensino, este sendo seriado e simultâneo, através da Reforma de Couto Ferraz, responsabilizando os pais com multas e prisões caso estes não estimulassem seus filhos a estudarem em escolas a partir dos 7 anos de idade – com exceção dos filhos de escravos. Após esse momento, os próximos projetos de reformas políticas educacionais se preocuparam mais com um higienismo social e moral religioso nas instituições do que propriamente com o conteúdo do ensino ou mesmo com uma legislação mais coerente com a realidade cultural brasileira, mantendo o padrão extremamente elitista dos projetos, enquanto a grande maioria do Brasil não tinha escolas e as escolas que existiam, em sua maioria, mantinham majoritariamente um padrão moral religioso. Destaque para a Reforma de Leôncio de Carvalho (Decreto 7.247/79, de 1879), que estabelece a obrigatoriedade do ensino até os 14 anos, assim como a criação dos jardins de infância opcionais para crianças de 3 a 7 anos, e cursos de alfabetização de adultos nas províncias, também opcionais, juntamente com as faculdades de Direito e Medicina. A partir de 1888, com a “abolição” da escravidão, grande parte da mão de obra escrava passa a ser substituída por uma espécie de mão de obra assalariada e “livre”, fazendo com que a educação recebesse muito mais atenção da legislação, considerando a efervescência da segunda revolução industrial na Europa. Agora é função da educação, formar o novo trabalhador, num país onde a plena economia ainda era agrícola, e que na prática, ainda mantinha a moral católica, a alfabetização e a aritmética básicas como essência – e agora acoplando às instituições dos grandes centros urbanos, as ciências e certo conhecimento sobre profissões como prática.



Com o advento do regime federativo, a instrução popular passa a ser responsabilidade dos estados, e do Estado em conjunto só após o governo de Vargas. A grande verdade é que durante todo esse período, a educação no Brasil não se resolve, por questões de conflitos de concepções pedagógicas e políticas fundamentalmente, até a criação da ABE (Associação Brasileira de Educação, em 1924), que vai discutir e trazer, finalmente, algumas transformações, de fato, para a educação, esta mais voltada para a industrialização e comércio, a partir de Vargas.


Em 1932 é lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, cujos escolanovistas, através da legislação, entram de vez na corrida pela assunção da educação no Brasil, apoiados por Getúlio Vargas que, por sua vez, coloca a educação como questão nacional. Este manifesto, que em si se tratava mesmo de um Plano de Educação Nacional a pedido do próprio Vargas, traz em si muitas ideias revolucionárias para a época, realocadas inclusive na constituição de 1934. Mas na prática, essas ideias ficaram no papel, principalmente com o advento do Estado Novo em 1937. 


Desse Manifesto, destaco o tópico intitulado “O Papel da Escola e sua Função Social”. Entre outras questões, este tópico trata da necessidade de “incorporar instituições periescolares e pós-escolares na constituição da instituição escolar, dada sua importância na constituição educativa da sociedade”. O Manifesto destaca ainda que, por serem as esferas sociais que muitas vezes educam “até mais que a escola”, estas não deveriam se situar à margem dela; ao contrário, suas práticas deveriam complementar ou mesmo corrigir práticas escolares que por ventura não atendessem à demanda social de certos grupos sociais. Apesar desse ponto em destaque, o restante do Manifesto, ao que se pretendeu discutir acerca da educação a partir dos anos 1960, traz questões de ordem normal, convencional, como a laicidade, a gratuidade, a coeducação (não separação dos estudantes por sexo), e a obrigatoriedade da educação, assim como reforça a legislação da época, em que todas as crianças eram obrigadas pelas famílias e pelo Estado a frequentarem a escola dos 7 aos 17 anos. Um argumento para esta obrigatoriedade era a de que o Estado precisava manter uma organização da mão de obra (ordem) para o desenvolvimento do Brasil (progresso), e nada como a escola para fazer esse papel. Na teoria, a preocupação com a questão cultural e econômica se refletia em como se a criança que não fosse para a escola pudesse ser prejudicada pela ignorância dos seus responsáveis, ou até mesmo ser prejudicada por ser pobre e, assim, não ter acesso à cultura (das letras). A escola, então, serviria para a “criança ter cultura”. No todo, esse manifesto tece uma série de princípios que à época, fazem valer sua insistência, considerando as características desnumanas das políticas e da economia do Brasil até os anos 1930. O que quero dizer é que, esses princípios, hoje considerados extremamente retrógrados e obsoletos à luz das possibilidades educativas contemporâneas, na época pareciam ser princípios que, talvez, até fizessem sentido em alguns pontos, em alguns lugares, e em algumas situações, como por exemplo as concepções das bases psicológicas para a educação, pautadas na atividade constitutiva do sujeito, voltada de dentro pra fora, e não de fora pra dentro; ou dos princípios filosóficos, que se pautavam numa autonomia do educando, em função dos conteúdos e dos seus professores. Contudo, no que tange à estrutura geral, permanece tudo bem semelhante, a exemplo da educação da infância, que se dava obrigatoriamente dos 4 aos 6 anos; a escola primária para alunos de 7 a 12 anos; secundária de 12 a 18; com prédios fechados, salas de aula, alunos enfileirados, uniformizados, padronizados, homogeneizados; organização esta que está completamente dentro de um padrão convencional e obsoleto para o desenvolvimento de uma educação para a liberdade e para a autonomia. 


Dá para arriscar dizer então que, na prática, após o governo de Vargas, as escolas se transformam mais no sentido estrutural do que propriamente no sentido filosófico, fundamentalmente porque o Estado Novo, assim como toda ditadura, fechou-se à aceitação de certas filosofias de uma educação para a liberdade e autonomia, fazendo com que essas ideias não se materializassem, considerando revolucionário somente as ideias estruturais e técnicas, deixando de lado os ideais filosóficos e sociológicos, inclusive os próprios projetos escolanovistas – outrora apoiados por Vargas – foram abandonados, por se pautarem num cunho democrático.


Na era dos governos populistas pós-estado novo, adentramos num conflito entre escola pública e escola particular, aquela defendida pelos escolanovistas e pelo Estado, e esta defendida pelos empresários da educação privada e pela igreja católica – salientando, porém, que ambos se interessavam mesmo por um ensino técnico para o trabalho. Considero esse ponto importante porque é um ponto nevrálgico do processo de educação para liberdade e para a autonomia no Brasil, pois trata da possibilidade de haver certa liberdade institucional a partir da desestatização da educação. Infelizmente, graças ao contexto cultural da época – e de nossas heranças convencionais – o apoio às escolas particulares, nesse momento, jamais pudera ser considerado uma posição democrática de fato, pois a igreja católica, juntamente com os empresários da educação, alargaram uma corrida conjunta pela desestatização da escola, engendrando um elitismo proselitista da educação no Brasil, pautando suas ações somente nos princípios do lucro, deixando-nos uma herança cultural muito forte dessa posição até hoje, a exemplo da “indústria do vestibular” e da força da tradição convencional educativa das grandes escolas confessionais.


Os anos 1960 foram transformadores para a educação no sentido filosófico, pois trouxeram ideias e princípios educacionais pautados numa liberdade e autonomia plenas, à parte de uma luta entre empresas educativas (escolas particulares) e financiamento de mão de obra estatal (escolas públicas obrigatórias). Nesse momento, surgem pessoas de pensam e lutam por uma educação que considero transformadora de fato, a exemplo do Paulo Freire dos Círculos de Cultura, do Ivan Illich e do Everett Reimer da desescolarização, da adoção constante da pedagogia Montessoriana (a pedagogia do século da criança!) e do desenvolvimento das pedagogias Waldorf no Brasil – sendo, em minha opinião, esses os maiores movimentos revolucionários da educação no Brasil até hoje, por carregarem em seus ideais e em suas práticas educativas e de vida, a negação do maniqueísmo público-privado/ideologia-mercado, além de se fundamentarem numa educação para a formação cultural em todas as instâncias da vida do sujeito (Illich e Reimer ultrapassando essa perspectiva, chegando a permear por uma perspectiva nietzscheanista da educação, de uma antipedagogia ou mesmo uma psicagogia como pedagogia). Nessa perspectiva, atenta-se de fato para a formação da mentalidade das crianças a partir de uma liberdade real, fundamentalmente, indagando se estas deveriam mesmo estar longe dos cuidados familiares num tempo tão conturbado politica e economicamente. Contudo, essa proposta educativa foi pontual no processo de transformação educativo brasileiro, sendo mais comum nesse momento (dentro das alternativas às propostas anteriores) as propostas pedagógicas das teorias crítico-reprodutivistas, crítica dos conteúdos e histórico-críticas.


Com a chegada da ditadura civil-militar no Brasil, em 1964, sobressaem-se, obviamente, as pedagogias técnico-produtivistas, que deixaram uma herança tão forte na estruturação dos ideais de educação no Brasil, que até hoje a grande maioria das escolas, e dos próprios programas de educação do Estado, baseiam-se na estrutura básica repensada nessa época (já herdada estruturalmente dos projetos arcaicos anteriores), pautadas nos princípios de racionalidade, de eficiência e de produtividade. Obviamente que hoje há acréscimos nesses ideais convencionais, provenientes da ascensão da democracia, organizando-se uma espécie de “pedagogia técnico-produtivista democrática”, em que prevalece, na grande maioria das escolas públicas ou privadas, os muitos dos princípios sistematizados e fundamentados no regime militar.


Em 1971, através da Lei 5.692/71, oficializa-se o tecnicismo clássico nas escolas, a partir de uma reforma nos primeiros e nos segundos graus. Nesse momento, as escolas enxergam, nas crianças pequenas, adultos em potencial (trabalhadores potenciais, criminosos potenciais, industriais potenciais, intelectuais potenciais, políticos potenciais, etc.), estruturando uma sistemática militar nas escolas, através do resgate de características tradicionais dos quarteis, com hinos, juramento à bandeira, ações hierarquicamente autoritárias, etc., com objetivo de regularem esses “potenciais”. Tal modelo se fortalece muito pela necessidade de criação de mão de obra para o modelo econômico então vigente no Brasil (baseado no fordismo e no taylorismo), e a escola, mais do que em qualquer outro momento no Brasil, passa a ser a principal condutora dessa padronização, prevalecendo a ideia das crianças enquanto capital humano potencial


O princípio da racionalidade, nesse momento e nesse sentido, nega a toda a criança – pois o ensino escolar é obrigatório para todos –, a oportunidade de “perder tempo” – princípio da otimização –, pois o ócio passa a ser considerado ineficiente para a produtividade, fundamentando a pedagogia técnica nos princípios da neutralidade, da objetividade, e da operacionalidade. Em suma, o trabalhador deve se adaptar cada vez mais rápido ao processo de trabalho, na medida em que as crianças devem se adaptar mais cada vez mais rápido ao processo escolar. Assim, cada vez mais cedo, as crianças deveriam obrigatoriamente entrar na escola e lá permanecer até que saísse um adulto modelo para servir ao mercado dessa ebulição econômica. 


As ações de ler, escrever, contar, etc., passam a ser, então, oficial e largamente difundidos – além de legitimados pelo behaviorismo – em substituição à “perda de tempo” do brincar, das atenções às subjetividades do ser, etc., fazendo com que o processo educacional seja “mecanizado” através de uma forte organização racionalista e instrumentalista. A criança que não seguisse esse padrão – não soubesse ler e contar desde muito cedo – era considerada “atrasada”, e precisava se “adiantar” para alcançar os outros e permanecer igual a todos. Do ponto de vista administrativo, dá pra dizer que as mesmas características que estruturavam uma fábrica, passam a estruturar a escola, gerando uma enorme burocratização do processo educacional, amarrando abusivamente a oportunidade de criação e de transformação do ser, gerando uma sociedade de mentalidade técnica e produtivista.


Do meio para o final do regime militar, fortalecem-se outras tendências pedagógicas, voltadas para um ensino “democrático”, sendo as chamadas tendências crítico-reprodutivistas as mais cotadas no momento. Chama-se de tendências críticas porque as teorias que elas integram postulam não ser possível compreender a educação senão pelos seus condicionantes sociais; empenham-se em explicar a problemática educacional, remetendo-a sempre a seus determinantes objetivos; e é reprodutivista porque suas análises chegam invariavelmente à conclusão de que a função básica da educação é reproduzir e manter as condições sociais vigentes básicas. Aqui encontramos o ponto central de nossa critica à escolarização: em nossa opinião, a educação poderia alertar, e, fundamentalmente, transformar nossa deplorável condição social, em vez de simplesmente formá-la, reproduzi-la e mantê-la nas mesmas condições – característica da grande maioria das escolas no Brasil hoje. 


Na sequência surgem outras tendências mais radicais, que vão, a partir dos anos 1980 e 1990, transformar de fato algumas práticas educacionais, alcançando uma práxis pontual em determinadas localizações do Brasil. São elas: as tendências crítica dos conteúdos e as histórico-críticas. É, contudo, graças ao fim do regime ditatorial, que essas tendências começam a se materializar. A tendência crítica dos conteúdos fundamentalmente critica e tenta transformar uma educação conteudista, fundamentando-se na democratização do ensino e na escolarização pública gratuita. Já a tendência histórico-crítica está baseada na dialética materialista histórica marxista, que fundamenta a necessidade da função social da escola se pautar na prática social, ou seja: a educação escolar deveria partir da prática social para a prática educacional, e não o contrário. Algumas escolas então passam a se organizar em função dessas novas tendências, e reivindicam para si – algumas com razão, outras não –, um status de escola democrática, outras um status de escolas “libertárias” – sem razão, pois as escolas libertárias se referem a tendências surgidas nos porões dos movimentos anarquistas que, por si só, seria um movimento político que, na prática, acabaria por negar a escolarização, e não sistematizar um esquema escolar.


Contudo, mesmo com essas novas tendências como herança recente, a prática geral educacional escolar na atualidade, permanecem ainda extremamente fundamentada nos princípios surgidos no regime militar, acoplando-se a esses princípios, fundamentações democráticas, como por exemplo, a partir da nova legislação dos Parâmetros Curriculares Nacionais – ainda atuais –, a inserção dos chamados Temas Transversais. Nessa perspectiva, o ensino dos dois primeiros ciclos básicos (1º e 2º anos, 3º e 4º anos, respectivamente) deveria conter, como base, irremediavelmente, temas como ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual, e pluralidade cultural, paralelamente ao ensino de português, matemática, ciências, artes e educação física. Ou seja: uma tentativa de atribuir ao racionalismo educacional herdado e construído culturalmente no Brasil, alguns princípios mais humanos, por meio da atenção à subjetividade dos sujeitos no processo educativo, embora na prática, isso raramente aconteça.


Mas o fato das escolas não terem mudado sua estrutura básica (física e profissional), elas não conseguem manter por muito tempo essa “educação”, pautada nesses tais temas transversais. Por meados e fim dos anos 1990, muitas escolas que optaram pela proposta de abordar tais temas como temas principais, faliram; ou falharam na tentativa de partir para uma transformação real na educação de suas crianças. Faliram (ou se adequaram ao modelo padrão do mercado educativo atual) porque o sistema econômico de financiamento da educação (público ou privado) ainda exige praticamente as mesmas adesões político-filosóficas que à época dos anos 1970. Logo, essas escolas fecham, ou viram grandes empresas propedêuticas de acesso ao ensino de nível superior (pré-vestibulares). Nessa dinâmica, as crianças dessas instituições passam a sofrer no limbo que essas escolas se encontram, pois a grande maioria dessas escolas não consegue manter essa fusão, e acabam se adaptando melhor ao grande sistema já engendrado. Quando não o fazem, sucumbem aos poucos. 


Porém, dos anos 2000 pra cá, tem havido certo aumento no número de escolas que se propõem a transformações reais do seu funcionamento. Aos poucos, parece que muita gente vem sentido que uma educação pautada apenas nos princípios racionalistas e de eficiência produtivista não tem (trans)formado adultos mais humanos e mais éticos que outrora. Nesse sentido, muita gente tem se mobilizado para tentar mudar essa realidade, tentando não seguir qualquer caminho já proposto pedagogicamente, e levando sua instituição a preceitos e práticas distintas do que foi proposto até aqui – fundamentalmente, mudando toda uma estrutura. 


É nessa esteira que vamos seguindo na esperança de um dia poder ver transformações reais que, em meu ver, só serão possíveis em larga escala quando saírem do veio institucional legal, e indiscutivelmente passar por uma transformação tão radical, mais tão radical, a ponto de se desmanchar o ideal e a estrutura escolar, em função de outros ideais e estruturas. Sabendo que não é lutando contra o velho, mas sim construindo o novo, que conseguimos nossas transformações, acreditamos que, talvez, a própria ideia de desconstruir a escola, para poder (re)construir outra coisa (quiçá uma “escola” enquanto organização social voluntária), seja a grande transformação necessária para o século XXI – e para o tratamento mais humano das crianças na nossa era.


PS. Esse texto constitui uma síntese, a partir da leitura da obra de Demerval Saviani, intitulada História das Ideias Pedagógicas no Brasil (2007). Embora saibamos que esse livro não analisa profundamente as práticas pedagógicas e educativas no Brasil, mas sim a legislação e as ideias que surgem nos projetos políticos e educacionais a partir de uma perspectiva histórica político-econômica, ele nos ajuda a pensar como essa prática poderia ter sido conduzida, e como de fato pode vir sendo conduzida nos dias de hoje, a partir de um exercício de imaginação estruturado a partir de uma análise histórico-crítica (própria do Saviani). Contudo, ainda entendo esse livro como uma percepção histórica generalista e convencional, cronológica e linear. Por isso tentei, nesse texto, focar uma ideia específica, a saber, a questão da educação escolar com relação às crianças, deixando propositadamente de lado questões mais voltadas a outras etapas do ensino (como a dos adolescentes, das universidades, e práticas docentes específicas de casos específicos).