sexta-feira, 11 de julho de 2025

A POEIRA HISTORIOGRÁFICA E OS ÁCAROS DO TEMPO

 


das runas às ruínas
aos búzios feiticeiros
da traça monocromática
à poeira historiográfica
varrida pelo vento
com os ácaros do tempo 
e sua dermatite atópica
na pele dos que negam 
à história sua
qualidade de historiadora-
docente comum à lama
e ao caos de si
natureza nas coisas,
desejo infiltrações
que tragam 
no mofo e na ruga 
do lodo das brechas 
das rachas e muros
do imprevisto
água potável de vida
e vida melada de força 
pra gente que quer
comer
histórias 
que pulsam vivas
com satisfação só
por querer ser e sorrir
e se derramar água
nos desertos do
acontecimento
do corpo
que também é 
templo e fumaça

A poeira histórica e os ácaros do tempo com sua dermatite atópica na pele dos imortais tem negado à história sua qualidade de historiadora-docente comum à lama dos mangues e ao caos dos guetos de si como ordem natural das coisas.


Eis aqui uma crítica historiográfica indiciária que se tece a partir da correlação entre o que se enaltece enquanto discurso histórico e o que se estabelece enquanto verdade histórica, relacionando uma tentativa rizomática de compreensão dos conceitos de cultura histórica e consciência histórica, comunitária (senso comum) e institucional (escolar), observada a partir das relações e dos movimentos de aprendizagem da história ensinada e tecida no seio da comunidade social e institucional, aprendida culturalmente e em como essa relação molda saberes históricos sociais. 


O que se quer com essa conversa é discutir sobre o que acontece com as narrativas sobre a vida nas relações vivas, entre como acontecem e como elas chegam e fazem parte de nós e como nós as interpretamos. 


A construção dos discursos de verdades históricas está direta e sistematicamente acoplada aos regimes das formas de seleção, legitimação e distribuição do conhecimento no tempo pela seleção da memória que se quer lembrar intencionalmente, veiculada pela e na própria relação entre as coletividades. 


O conhecimento histórico da vida prática e cotidiana é concomitantemente realocado a novas perspectivas de consciência histórica, ressignificando o conhecimento histórico social, ora se distanciando, ora se aproximando do saber histórico institucionalizado. Quando o que se diz nas escolas sobre história, por exemplo, está muitas vezes desconectado da realidade prática do cotidiano da vida prática, mas buscando moldar essa vida a partir das narrativas.


O conhecimento histórico é geralmente mobilizado como práxis de transformação cultural. Mas uma grande parte desse conhecimento caminha por fora das sistematizações institucionais, e atuam como legitimação do poder político para o conhecimento, já que a História, na prática da vida, dá sentido ao espaço-tempo dos sujeitos a partir das demandas da presentificação, dos modo de sujeitamento, enquanto considera toda a relação humana, de si consigo (si-mesmo) e de si com o mundo (acontecimento), mediada por significados constantemente re-estabelecidos e co-criados culturalmente.


O que se entende por história, no dia a dia, geralmente está conectado com o que lhe é informado sobre os acontecimentos no tempo, conectando passado e presente. Essa explicação geralmente é oferecida através de performances validadas através de ferramentas de comunicação acessível, mas controlada em sua produção, reprodução e divulgação.


Atento à questão da pluralidade cultural e à influência do cotidiano e do conhecimento “comum” como sendo fundamentais para se problematizar a História institucionalizada, professores e pensadores da história chamaram atenção para o fato de se querer que a história da vida prática seja influenciada e definida pela história institucionalizada ou contada nas pesquisas por cientistas. Mas geralmente a gente olha para a história ensinada institucionalmente como se ela acontecesse de modo descolado da vida prática, do nosso dia a dia, e isso tem a função de manutenção de poder, porque é assim que se relaciona o saber popular como algo negativo e sem valor, e não como um campo de saberes e práticas que contribuem para a compreensão de si, do outro e do mundo num movimento de resistência contra opressões.

  

Qual a função social da história? 

Qual a função social da pesquisa histórica?

Qual a função social do ensino de história? 


A História está abalada porque vem perdendo seus paradigmas, estabelecidos a partir de um cientificismo e de um determinismo, de um positivismo e de um metodologismo propedêutico, positivo, cartesiano, linear e vertical, mesmo quando abre a novos cenários de interpretação do conhecimento já legitimado, pois se utiliza de um mesmo molde de mentalidade para se pensar e tecer a História enquanto sentido social.


A História vem passando por constantes e múltiplas crises de ressignificação, já que não é (mais) possível (re) interpretar acontecimentos da vida prática cotidiana através de narrativas históricas legitimadas, pois a vida social prática no mundo opera nas infinitas interpretações possíveis do passado, que, por sua vez, atua como crítica minuciosa à própria vida prática, assim como uma tiragem de tarô, enquanto sujeitos buscam desconstruir e ressignificar a vida imersa numa demanda social prática, a partir de constructos simbólicos tecidos na e por novas ou outras narrativas práticas e vivas.


A história é viva.


Muita gente que está reescrevendo a história agora, está reescrevendo a partir de outras e novas consciências históricas, trazendo à baila outras e novas culturas históricas, e isso está remodelando as histórias contadas em outros momentos, mudando os fatos que antes pareciam fixos no tempo. Por isso que a gente diz que a história é viva. Porque finalmente se percebeu que quem sabe sobre sua história e conta ela, encontra poder para se defender do que não deseja que lhe afete e se exalta.


Para isso que serve a história. Por isso que ela é tão importante. Mas mais ainda, por isso que é tão importante dar voz a quem nunca as escreveu e legitimar o resultado dessa provisão. De maneira bem simples, diz-se que a história serve pra gente se lembrar e aprender, para não repetir os mesmos erros do passado no presente. Uma terapia do coletivo. Mas mais que isso, ela é uma arma (ou um escudo) para quem foi esquecido. Diz-se por aí que a intenção da narrativa história fica mais explícita a partir do que ela não diz, e não do que ela diz.


Aqui a história se mistura com o papel do seu próprio ensino. E esse movimento de aprendizagens não se trata de um destino, pois tem ligações com os tempos, enquanto dialoga com o presente e suas dúvidas. Não é estático, pois a cultura da vida e suas possibilidades de desconstrução e ressignificação do conhecimento são cabais para o discurso preso aos ditames da ciência moderna e aos esquemas metodológicos e/ou teóricos de autores. 


A história e seu ensino estão o tempo todo em refazimento. Por isso não dá pra olhar para estrutura da escola e do ensino de história e aceitar que continuem como estão.


Os esquemas teórico-metodológicos (o jeito que se pensa e se faz a história estudada e ensinada) dos seus autores e teóricos é que ainda baseiam a estrutura do conhecimento histórico até aqui legitimado institucionalmente na escola, já que estes esquemas modula um paradigma e este paradigma gera um modelo de orientação para a produção de conhecimento válido, abolindo outras perspectivas, bem na perspectiva imperialista de ver a estrutura da construção da vida, como se algo sempre que tivesse que dominar e oprimir para sobreviver, sendo impossível conviver em conciliação com outros modelos de verdade (e outras verdades) diversas.


É por isso que um modelo historicista sempre estará abalado quando enquanto sobrevive somente em função de uma avassaladora desvinculação com o mundo prático da vida, quando da construção da verdade histórica e, fundamentalmente, da problemática da ‘distribuição dessa verdade’, que se refere (neste modelo absoluto) a prioridades de poder político, sintetizando a História através de verdades engessadas, não funcionais às demandas comunitárias coletivas e pessoais. 


Muitas vezes, o que se escreve e se constrói enquanto conhecimento histórico só consegue validar quem sempre já foi e ainda é validado; só consegue emancipar quem já é emancipado. 


Na esteira dessa crítica, compreende-se que, ao se ressignificar o discurso da verdade do conhecimento histórico e seus regimes de verdades por meio de movimentos vivos de aprendizagens múltiplas da história, assim como da história com função de elaboração da vida prática social, torna-se possível e preferível se refletir e problematizar profundamente a percepção histórica do presente possível a ser reconstruído da/na educação histórica e, assim, tecendo consciência histórica através da didática da existência, em suas percepções doxológicas e, fundamentalmente, epistemológicas, a partir de um movimento prático da História, da leitura e análise histórico-elaborativa no seio das relações sócio-culturais comunitárias. 


É fundamental que a gente olhe para as histórias que nos contam e para as histórias que contamos a nós mesmos, não do ponto de vista simplista da notícia bem produzida e bem feita, mas do ponto de vista de onde ela vem e para quem ela serve, sua intenção, seu objetivo. Muitas vezes nossa intuição sobre situações nos ensinam muito mais do que uma racionalização exacerbada, para além dos traumas. Mas podemos estar atentos a esse movimento.


Esse conhecimento histórico que nasce na vida prática e tem função social e cultural de modular a memória (o que deve ser lembrado; o que deve ser esquecido; como; quando; porquê e por quem, em função das demandas práticas sociais, atingindo e modelando estas através de seu regime de verdades) pode desconstruir e ressignificar arquétipos históricos, individuais e coletivos, conscientes e inconscientes, quando essa memória é reelaborada num processo conjunto de refundação da própria identidade sócio-cultural nos movimentos de ensino-aprendizagem da história, (re)tecendo identidades e refazendo o caminho da construção da ‘memória verdadeira’, através de uma sincronicidade relacional que se materializa através de uma metodologia que articula estruturas existenciais e filosóficas críticas, nas formas dos acontecimentos da História.


A memória é o tempo todo manipulável, misturada e enigmática. Ela nunca é a lembrança fidedigna do que a gente acha que lembra com o que aconteceu. Nem pessoalmente, nem coletivamente. Existe uma mistura mágica de tempos-espaços-imaginação nesse movimento. Quanto mais longe a lembrança, mais misturada ela é. Quanto mais sensível também. Quanto mais coletiva, mais influenciada por muitas visões diferentes. E por aí vai. 


Os movimentos de busca por outras interpretações metodológicas do conhecimento histórico acontecem, fazem parte das ambiguidades de um tempo e de uma situação, pois a História não é estática e nem atemporal, mas contextual. A História conta, vive e se esquece. Os tempos contemporâneos nos mobilizam sem referências e com excessos de referências. 


Hoje temos muita informação e quase nenhuma referência. Toda e qualquer opinião, mesmo que seja ela completamente contrária uma da outra, sempre terá ao seu dispor uma infinidade de formas de discursos que a defendem e te convencem de que ela é a verdade. Porque, nesse sentido, não existe a verdade histórica. Ela é múltipla. Depende da intenção.


Daí, as tensões e os paradigmas desencontrados. Entender historicamente esse excesso de referências, ou sua falta, muda o paradigma da lida, da relação com a verdade, com o fato, com o acontecimento e, consequentemente, com a vida prática, enquanto o abalo é grande, das mercadorias que reinam, dos fetiches de manutenção do status quo, que é diferente de resistência. 


Resistência é criação. Aí o tempo não segue linear porque a simultaneidade é condição. A simultaneidade e a diversidade operam através dos entrelaçamentos, das idas e vindas da vida. O historiador que se prende na divisão entre prática (escrita técnica) e teoria (filosofia do pensamento) morre, porque a sociabilidade se esfarrapa com as tecnologias dominando e derrubando padrões. 


Há de se trazer a vida, criar uma intimidade com ela. Não dá para ficar só no academicismo. E, aqui, trata-se de entender o processo da história como historiadora-docente que é e, assim, localizar a função social do professor no métier do pesquisador. 


Trata-se de uma luta social de ocupar lugares e espaços de importância política. As mulheres negras. Povos afro-pindorâmicos. Pessoas trans. Não binários. Docentes. Ciganos. Macumbeiros. Animais. Florestas. Rios. Nada está fora dessa luta porque não somos de classe alguma. Precisamos nos juntar, nos melar, de terra, de água, de gozo, de vida. Só o suor já não basta mais.


A perspectiva metodológica da história como historiadora-docente desperta uma chave, uma janela, um gap para a possibilidade de vislumbrar outras formas de construção do discurso de verdade histórica e de redirecionar seus múltiplos regimes de verdades por meio de uma análise profunda das intencionalidades de produção dessas verdades, uma sincronicidade entre acontecimento, memória e presente, proporcionando ao leitor/construtor que constrói/lê junto esse conhecimento, novas formas de se localizar no espaço-tempo de sua existência.


No movimento das aprendizagens da História se diz de uma realidade e de uma não-realidade imediatas, presentes no fractal rizomático do acontecimento, que pode ou não carregar mensagens específicas que conduzem à interpretação histórica para uma ou outra direção, sem atribuir poder absoluto de verdade à uma origem específica. 


Mas temos que estar atentos. Marx não é profeta, mas não dá para negar a contribuição da compreensão da organização da sociedade em classes sociais. A alegria, a vida, o cu, a buceta, gozar, comer, trepar, cantar e tocar pode ser resistência, pode ser rebeldia contra uma ordem, uma alegre rebeldia, a alegria e a festa como rebeldia e resistência, tudo é força.


Cada realidade social possui uma lógica inclusiva para análise e criação de seus atributos de sentido e essa variabilidade pode ou não alterar os cursos da interpretação histórica dependendo da contextura de produção e análise do acontecimento, já que somos co-partícipes da lógica das possibilidades e das suas múltiplas intencionalidades. 


Aqui, a recombinação de aprendizagens da história como docente tem um caráter perceptivo ético, que se constitui na relação acontecimento-mundo-memória e geralmente faz sentir o processo de significação das funções sócio-comunicativas, justo no processo da formação cultural.


O modo de ser no mundo já é em si uma maneira de interpretá-lo e esta interpretação é uma tentativa de dar-lhe sentido que faça compreender-nos como parte dele. A negação desta potencialidade da interpretação é, no fundo, uma negação do próprio ser e é nela que se fundamenta a exploração humana, dizia Rüsen.


Não existe uma “realidade” que seja interpretada de diferentes formas, mas sim uma “realidade” que é construída de diferentes formas, com diferentes perspectivas e valores, que criam seu próprio cosmos explicativo: cada qual pretende possuir validade universal e se concebe como a única forma de interpretação válida. Na linguagem, na religião, na arte, na ciência, na História, o ser humano não pode fazer mais que construir seu próprio universo – um universo que lhe permite entender, interpretar, articular e organizar, sintetizar e universalizar sua própria experiência humana, já dizia Cassirer.


Desejo aqui infiltrações que tragam nas brechas dos muros do tempo água limpa de vida e vida melada de força pra gente que quer uma história que pulsa no tempo da transversidade de existir sem ter que dar satisfação por ser feliz, sorrir e se divertir.


    Foto: Francis Azevedo


Nenhum comentário: