terça-feira, 5 de abril de 2011

Epílogo da chama de uma vela


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Resenha do epílogo de:

BACHELARD. Gaston. A Chama de Uma Vela. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989 (pp. 107-109).


[...] o quadro recebe mil variantes: porém, guarda sua unidade [...]. Na primeira página do fim de seu livro A Chama de Uma Vela (primeiro parágrafo da página 107, já no epílogo), esse pensamento de Bachelard resume em poucas e belíssimas palavras a variabilidade sistemática da vida. Tudo está múltiplo por estar em constante relação com o outro, ao mesmo tempo em que também é uno ao guardar aquele milímetro átomo de particularidade, que centraliza sua individualidade, sua importância fundamental de existência. Independentemente de se tratar de um objeto, este por si só guarda instantaneamente uma unidade quando se relaciona com o sujeito, por ser, este último, capaz de caracterizar, de definir, de hierarquizar, de adjetivar.


 
Adquirir unidade-especificidade em um contexto coletivo, de rede, de sociedade, de variabilidade, nos remete diretamente à ciência e a sua prepotência de querer ser e explicar tudo em si e para os outros de si. Esse raciocínio me remete à epistemologia pedagógica; me faz lembrar as raízes da formação científica da pedagogia. A pedagogia não está só. Ela se constrói a partir de fragmentos específicos das ciências que tem a sociedade como objeto de estudo, de análise – mas a audácia de nomear objeto um grupo de pessoas, foi o que garantiu às ciências, tentáculos megalomaníacos de absolutismos e axiomas. A pedagogia (ou como alguns – que, a meu ver, são assim mais coerentes – chamam de Ciências da Educação) se constrói então nessa relação imagética do trabalho das memórias numerosas do trabalhador obstinado, como diz Bachelard. A pedagogia é uma unidade construída do múltiplo, é uma síntese, de uma sociologia (sociologia da educação), de uma filosofia (filosofia da educação), de uma história (história da educação), de uma antropologia, de uma ação política, de uma ação reflexiva; uma fusão sintética de uma relação múltipla entre ciências, direcionada à construção, avaliação, análise e estudo da educação. Sua vida central então, como coloca Bachelard, é o verdadeiro espaço do trabalhador solitário, que se encontra dentro de um quarto pequeno, nos limites internos da dimensão da realidade física de onde está (da mesa – p.107). É a síntese de uma função de ação da inteligência sobre a inteligência, de um pensar particular nosso (inteligência 1) sobre uma consolidação construída inconscientemente por nós em coletivo (inteligência 2). Em uma palestra genial uma vez, o professor Milton Santos refletiu sobre a necessidade de se estar só para trabalhar sobre o papel branco. Essa solidão que Bachelard traz nos evoca a constante necessidade de estarmos sós, para trabalharmo-nos para, posteriormente e, simultaneamente, trabalharmos o que está também fora (a sociedade, em particular, a escola e suas relações diretas com aquela, referindo-me à pedagogia).

Mas então, o trabalhador sobre seu papel branco constrói uma gravura, válida pra mim – continua Bachelard – em mil lembranças, refletindo a não necessidade de uma legenda, de uma explicação para um desenho. Então algumas das relações diretas entre memória e imaginação cutucaram-me os sentidos mais íntimos, já que escrevo. Ora, quem escreve também desenha. Desenha letras que, por um acordo coletivo, sistematizaram-se em uma organização comunicativa. Nesse sentido, a aura (como a quis Walter Benjamin) da palavra é o que seria a memória para Bachelard: ação reflexiva de externalidade (construção de signos para) através da reconfiguração subjetivo-objetiva do desenho em um significante – evolução dos sinais gráficos para alcançarem um objetivo: um padrão de comunicação. E a primeira prova de que somos simultaneamente muito diferentes e iguais uns dos outros, mesmo em grupos, é a possibilidade de haver letras (gráficas) tão particulares, com um mesmo fim: a comunicação.

Bachelard, quando coloca que seria preciso aventuras de consciência para posteriormente se perguntar: mas, sozinha, a consciência pode fazer variar sua solidão? (p. 108), desce à profundidade (como ele mesmo coloca) do que Kant chamou de um mergulho no inferno quando que, ao descrever as suas categorias de análise da crítica pura, lembra que não há mergulho mais profundo do que o mergulho em si mesmo. Pensarmos que a lembrança é constituída de memória (registro consciente de um quadro de passado) somada à imaginação (registro inconsciente, subjetivo, de um quadro passado) me faz imaginar o quanto Bachelard deve ter se aprofundado em si e em se entorno, ao propor a infinitude da filosofia numa chama de uma vela e num papel em branco que, enquanto vivia, desenhava, e de gravura em gravura, enquadrada num quadro ou num quarto, construiu a vida. Ao ler esse enxerto de Bachelard, lembrei-me de quando Nietzsche descrevia a descida de Zaratustra ao inferno de si mesmo (como coloca Bachelard) e que, a escada do ser (continua ele), era constituída de degraus espirais, e ele descia degrau por degrau. Essa imagem remete às discussões pós-modernas sobre a noção de tempo. Hoje a filosofia contemporânea (a fenomenologia) nos proporciona uma reflexão sobre o tempo, que me faz, às vezes, imaginar que tudo é agora. Sartre, ao dizer que o inferno eram os outros, já me fazia pensar em como seria possível haver um tempo futuro após a morte (o inferno dos cristãos) se eu já vivia esse futuro enquanto estava no presente, já que estamos, constantemente, com outros. A noção de tempo fenomenológico nesse sentido nos traz a noção de um helicóide, e foi exatamente esse desenho que vi quando Bachelard descreveu que descia, espiral por espiral, a escada do ser (III. p. 108).

Uma ação da inteligência sobre a inteligência está presente quando Bachelard coloca a necessidade de regravar o gravador: regravar, a cada vigília, o próprio ser solitário (p. 109). Nesse momento, Bachelard deixa claro, para mim, o que, para ele, é poesia. É a ação de “poesiar”, de ressignificar o mundo da vida através da própria vida. E é aqui nesse contexto que retomo o que falei acima, sobre a lembrança: é na constituição dessa poesia que estão nossas fantasias, nossos desejos, nossas vontades. São essas vontades que constroem parte do nosso mundo, da nossa vida, e dão representatividade social ao que é individual, considerando que a individualidade é, também, constituída do (e no) coletivo. Esse hall da memória então é mais vivo quando Bachelard se refere à tensão do silêncio: a existência em tensão (IV. p.109). Bachelard coloca: Na tensão diante de um livro de desenvolvimento rigoroso, o espírito se constrói e se reconstrói. Toda transformação de pensamento, todo futuro de pensamento, está em uma reconstrução do espírito (IV. p.109). Logo, é na tensão da folha em branco que o espírito se desconstrói, para então se re-construir. O livro é organizado para reorganizar o espírito desconstruído pela folha em branco. É quando a gente escreve. Ou melhor: desenha.   


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