Segundo alguns teóricos da educação, a crise dos sistemas de ensino
provém do fato de não se saber mais que finalidades a escola convencional deve
cumprir e para onde deve orientar suas ações, num mundo tão complexo,
tecnológico, e cheio de novidades. O que nós percebemos desse contexto é que
certos processos da modernização têm produzido uma crise de sentido que vem
afetando essas instituições, outrora encarregadas de fornecer padrões de
experiência aos indivíduos, bem como uma coesão intersubjetiva.
As escolas estão perdendo suas crianças porque existe uma força
simples de ação da criança que, na prática, foge desses padrões. Essa força é o brincar, que a escola renega cada vez
mais cedo, numa sociedade que envelhece cada vez mais cedo suas crias. E embora
muitas vezes esse brincar funcione como reprodução de certos padrões de
experiência, ele os ressignifica e os reconstrói o tempo todo, a partir das próprias
demandas contextuais do instante e dos participantes desse instante,
presentificando as crianças.
Então, se o problema da
educação está na esfera dos processos de subjetivação pautados no paradigma do
poder normatizado e proferido como verdade, isso faz com que a educação
convencional autorize e legitime o governo do outro, enquanto molda a ação e a
imaginação das condutas éticas e estéticas da criança.
E enquanto vamo-nos tornando
adultos, repetimos, com as gerações posteriores, o mesmo que fizeram conosco. Destruímos
a liberdade do brincar, com os padrões dos desenhos animados, dos brinquedos
industrializados e acabados. Aí a imaginação da criança se fixa nesses
produtos, os reproduz, ao tempo que substitui suas próprias criações pelas que
já existem, finalizadas e construídas por uma indústria que, na maioria das
vezes, não está interessada na pluralidade da imaginação, já que imaginar por
si mesmo é um pleno exercício de liberdade.
Assim, a fantasia da
criança é instigada a produzir ficção científica. Ela praticamente só experimenta
a poética da surpresa do não planejado através do seu encontro com o
insignificante, com a tolice ou com o fracasso: a pedra lançada ao vento que
cai na casa do vizinho; o pisotear o lamaçal na rua que fica da chuva; a quebra
da ordem, do programado, ou da máquina, acabam sendo os únicos impulsos da
fantasia criativa. “Dar mancadas” torna-se a única poesia disponível nesse contexto,
como diria Illich.
Ao destrinchar esse problema,
percebo uma devastadora necessidade de reconfigurarmos todas as nossas relações
com o brincar, a partir de uma desconstrução mesma do sujeito que somos, pela
via de um movimento de redefinição ética e de uma desconstrução identitária
profunda.
Nesse sentido, o brincar
livre funciona como práxis (des)educativa, que se estabelece através de uma
doação existencial do ser, matriz para uma convivencialidade ético-espiritual
consigo, com o outro e com o mundo, reconstruindo, a partir da compreensão das
instâncias formativas mais profundas de nós mesmos, nossa criança interior, a
partir de um processo de (re)criação do nosso próprio processo de adultização.
Por isso a brincadeira livre é tão fundamental e importante: ela é
criativa, e se apresenta como práxis de vivência latente que se dá através
de experiências que desembocam num mergulho de transcendência das instâncias
bases da fundação do ser no instante de nossas vidas, e assim reconfiguram
nossa forma de ver e sentir o mundo, a partir de um movimento de
realinhamento constante de si.
O brincar livre emerge nas relações à medida que os indivíduos
priorizam a aprendizagem livre, sendo, estes mesmos indivíduos, os principais
autores e atores no processo da tessitura de (novos!) saberes, e na construção de
conhecimentos necessários naquele instante de vida, sem depender de parâmetros específicos
industriais e curriculares.
Logo, o brincar, nesses termos, inscreve-se como exercício de criação
de novas formas de emocionar, pensar e fazer as relações, em si, com o outro e
com o mundo.
Por isso acredito que se realiza como movimento político de re-existência
a diversas formas de assujeitamento derivadas da educação formal, enquanto foge
dos padrões de conduta instituídos como política de vida aceitável ou
curriculável, e que por isso talvez seja constantemente excluído da esfera
pública e cerceado em seus modos de existência.
A problematização derivada de sua ação busca ampliar e amadurecer
outras reflexões sobre o lugar da própria criança no mundo (assim como da nossa
criança interior), num movimento de (des)educação e de construção coletiva.
Logo, entendo os múltiplos espaços do brincar livre como espaços de
condição de possibilidade para diversas formas de realinhamento de si, porque
são espaços que podem reconstruir crenças, hábitos e padrões
convencionalizados.
Do ponto de vista da governamentalidade, torna-se uma atitude
revolucionária, pois se manifestada na ação de condutas éticas autônomas,
observáveis no vínculo entre o dizer e o fazer, que se torna critério de ação, enquanto buscamos nos referir a outra forma
de si nas relações de poder. Essa forma de si gestada no brincar livre perfaz
as relações, estabelecendo-as para além do sentido dialógico, referindo-se a
uma estilística da existência, precedido através do resgate de si mesmo.
Por tanto, rompemos com o
paradigma do poder, a partir do seu processo de desconstrução, resgatando um paradigma
da potência, a partir do afloramento das potencialidades da criança, cuja forma
de lidar com/para/na vida se firma quando acionamos nossos atos criadores,
derivados da liberdade e criatividade que experimentamos.
Esse exercício de se livrar de
certa normatização e regulação gera um movimento de autoconhecimento que nos
faz voltar às profundezas formativas das crianças de nós mesmos, a fim de nos
entendermos em nós mesmos e, consequentemente, o nosso papel no mundo.
Brincare, e verás!
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