quarta-feira, 3 de julho de 2019

APRENDIZAGEM LIVRE, EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE



A concepção de aprendizagem livre pressupõe a aprendizagem como perspectiva de mudar, de se transformar, a partir e com a experiência, e não só a partir de uma teorização exacerbada da realidade.

Ela pressupõe que nossas ações criadoras e transformadoras são fruto das nossas emoções, e que o saber, por si só, não garante a fluidez dessas emoções, por isso muitas vezes sabemos, mas não fazemos.

Existe certo tipo de emocionar que pode fazer uma sociedade inteira acatar certo tipo de aprendizagem, e não outro. Como bem nos lembra Humberto Maturana, “aprender não é apreender com o mundo, mas sim mudar com ele”.

Quando não mudamos com ele, facilmente acatamos as emoções estabelecidas pela convencionalidade normatizada, polarizada, secularizada e estagnada. Quando mudamos com ele, mudamos nós mesmos, e nos colocamos para além do bem e do mal.

Nesse sentido, a aprendizagem livre busca desconstruir a relação ensino-aprendizagem, preferindo a aprendizagem mútua. Coloca-nos no lugar de aprender com o outro, enquanto ele aprende conosco, diluindo as relações de poder sobre o outro.

Quando não nos colocamos acima ou superiores ao outro, torna-se mais fácil não podá-lo em sua criatividade.

Substituímos assim nossa relação de poder por uma relação com a potência.

Carla Ferro nos instiga a entender a aprendizagem livre como a adoção de um novo tipo de emocionar, baseado na confiança na vitalidade das relações humanas, redefinindo nossa fundação biopsicológica fundamentada no binômio cristão do medo e da esperança que, na verdade, não são opostos:

“Medo e esperança não são emoções que criam modos distintos de agir, mas engendram um mesmo modo de ação porque, tanto um como o outro representam uma garantia, alguma coisa que está à frente, no futuro, à espreita”.

Saindo desse lugar de disputa entre o medo e a esperança, percebemos que ambos acabam tendo a mesma função no processo de criação:

“É sempre uma ameaça e uma promessa, e o medo governa nossas ações a partir de um futuro hipotético. Se você não estudar, você não vai ter um bom emprego, não vai ser ‘alguém na vida’, etc.; enquanto a esperança faz a mesma coisa: se você trabalhar muito, você vai ser promovido, você vai ter mais chances, ser mais importante, ter mais dinheiro, etc. Assim, permanecemos num mesmo ciclo”, diz ela.

Dessa problemática, inferem-se preocupações sociais paradoxais da atualidade, erigidas por um mecanismo biopolítico de profundo aprisionamento (de si em si, e de si no outro) da liberdade do pensar e do agir.

A dualidade (medo e esperança, certo e errado, feio e bonito) é nuance de uma construção ética e estética específica, mas não corresponde a toda a realidade possível.

Todas essas nuances são, na verdade, faces de uma mesma moeda: somos todos certos e errados, feios e bonitos, medo e esperança, bons e maus, dependo das demandas do tempo-espaço de cada instante.

Tais processos de polarização provêm de uma estrutura secular da Educação, que nos estagna.

E é difícil sair disso porque a maioria das perguntas que hoje se faz à Educação convencional vem de uma estrutura impossível de transpor, pois a discussão em torno dessas perguntas produz um determinado tipo de crítica (teorização) em que o próprio modo de organização dessa crítica está fadado à superficialidade.

Muitas vezes o papel da educação não está, de fato, sendo questionado, mas continua seguindo o mesmo padrão existencial de conduta binário, dual, apesar da multiplicidade dos objetivos, objetos, e das diferentes formas de funcionamento das instituições e de suas práticas inovadoras.

Quando não questionamos de forma real o papel da educação, não lidamos com o próprio desenvolvimento do ser em sua acepção integral, em suas diversas esferas existenciais.

Intuição, emoções, sentimentos são relegados, mantendo-nos construtores de uma realidade e aprisionadores de nós mesmos, numa estrutura moral inoperante, que produz teoria em vez de ação, como nos lembra Nietzsche.

Separar, transformar, transmutar... intuir... aprender a como lidar com as emoções e com os sentimentos... seria isso trabalho educativo, ou trabalho espiritual?

Onde está a fronteira entre religião (polarização e secularização da educação), educação (relação ensino-aprendizagem) e desenvolvimento espiritual (percepção do ser como parte de um todo integrado em si, ao espaço e ao outro)?

Onde eles se misturam?

Até onde o sujeito mesmo da educação é o próprio sujeito mesmo?

E no mundo, as pedras, as plantas, os animais, o mar, o vento, a chuva, o sol, também não educam?

Fazemos parte de uma mesma condução de energia universal. Problematizar a educação, por si só, não é suficiente.

Os processos de aprendizagem livre nos propõem essa percepção: de que educar-nos de forma transformadora é mais do que transformar o mundo. Torna-se, pois, uma tarefa de transformação de nós mesmos, de nossa forma de ser e agir internamente, resgatando a força criadora das diversas potências espirituais do nosso ser, adormecidas e/ou entorpecidas pela normatização, pelos automatismos, e pelos reducionismos sociais.

Ao entendermos a educação como processo espiritual, começamos a repensar nossas respostas. Mas não em função das mesmas perguntas, e sim em função de novas perguntas, genuínas; de perguntas que, na verdade, ainda não têm respostas.

E essa renovação das perguntas parte, possivelmente, de uma realidade de mundo onde há confiança nas relações humanas, na vitalidade das relações humanas.

E é a partir dessas relações, dessas novas relações, que é possível pressupormos novas formas de ver, pensar e fazer a aprendizagem, a partir da confiança no que você é; no que o outro é; no que o mundo é; e, mais ainda, no que somos todos juntos.

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