domingo, 20 de julho de 2025

CELEBRAÇÕES, ESPETACULARIZAÇÃO, TORNOZELEIRAS E PRISÕES: UM PONTO DE VISTA PERIFÉRICO


Celebrar é importante. Fé na festa e rebelde alegria sempre foram os movimentos de resistência mais invencíveis da cultura popular ascendente. Vamos brindar à justiça e à responsabilização dos assassinatos e fascismos do governo anterior e olhar pra essa responsabilização como uma vitória, sim. É importante. 


Mas preciso confessar que, não sei se por estar ansioso ou depressivo ou psicótico ou desnutrido (ou os quatro), venho sentindo uma aura um tanto estranha nesse movimento todo. Não sei explicar bem, mas vou tentar.


Tenho sentindo uma sensação muito estranha em ver essa cobertura midiática toda em torno do bostonaro. Isso me deixa inquieto: uma grande cena espetacularizada, sem qualquer análise mais complexa sobre a situação. Na verdade, tou angustiado com isso, não porque acho que bolsonaro não deva ser preso ou responsabilizado pelos crimes que cometeu e ainda comete, muito menos ache que ele não deva ser punido pelo que fez. Deve, Óbvio que deve. Ainda mais fazendo parte do grupo político fascista e covarde que faz, com uma família escrota completamente articulada à milícia política. 


Mas realmente estou sentindo esse movimento espetacularizado todo (da tornozeleira, da prisão, de comemorar isso como se fosse uma grande vitória) como um grande jogo de narrativas, que tá escondendo algo por trás. Não sei. Mas é uma intuição. Mas espero estar errado. Mas vamos lá. 


Lembro do analfabeto pobre que já se sentiu completamente conectado com Lula por ele ter sido eleito presidente sendo da classe trabalhadora e analfabeto (como diziam). O povo se sentiu vingado quando Lula ganhou a eleição pela primeira vez. Lembro disso no corpo. “Lá está”, diziam, “um pobre, analfabeto, nordestino, trabalhador, nos representando na presidência”. Isso tinha muita força, porque o povo pobre se reconhecia em Lula, se sentia representado. 


Lembro também dos relatos de uma sala de aula da EJA cheia de jovens periféricos com tornozeleiras piscando, como se a sala de aula fosse uma grande árvore de natal. Esse povo possivelmente tá olhando como pro bolsonaro agora? 


Hoje, quando vejo e sinto o pobre analfabeto periférico se reconhecendo no bolsonaro (seja pela hipocrisia moralista ou por usar tornozeleira), me dá uma angústia. Mas eu entendo. É um sentimento complexo. Que tá aqui pulsando a partir de quem nasceu e cresceu na favela e sabe bem como esses sentimentos funcionam. No mínimo, duas coisas envoltas neles: sentimento de pertença e de sobrevivência. 


A favela não segue a lógica da classe média, de (ter tempo para) pensar, sentir e refletir sobre a vida, sobre a sociedade, sobre a política. A favela tem muitas complexidades. Muitas particularidades. Muitas demandas diferentes articuladas, imbricadas. A favela precisa resolver as coisas no agora, porque a comida precisa estar na mesa agora e as contas precisam estar pagas no fim de mês. Não há espaço para análises a médio e longo prazo. Aí você pode dizer “sim, a classe média também”, mas a questão política complexa nesse panorama é que, para quem não tem tempo e condições de possibilidade e oportunidade de refletir sobre a política, tanto a política de Lula quanto a de bolsonaro têm práticas que são criticadas e/ou aplaudidas. E é isso que acontece na periferia. Repito: chama-se lei da sobrevivência a curto prazo. 


Não se trata de um debate raso, entre direita e esquerda. A periferia é muito mais do que isso. As complexidades são outras. E a esquerda perdeu o acesso a essa complexidade faz tempo. 


Tenho observado que esses dias têm sido angustiantes por aqui pelo meu entorno físico, onde moro, pra maioria das pessoas que vi na rua, na fila do mercado, os motoristas e motoqueiros que me transportaram; praticamente todos da periferia, com uma cara de insatisfação com essa ideia toda de tornozeleira. Muitos da periferia ainda olham pra tudo isso que tá acontecendo como um "grande jogo de poder entre ladrões" ou com desdém, "porque do mesmo jeito que prenderam lula e soltaram, ele [bolsonaro] também vai ser solto", escutei nas conversas de rua por aqui. Ou pior: muitos ainda acreditam em bolsonaro e afirmam que ele tá mesmo sendo perseguido. 


Aí fico com meu juízo pendendo aqui: como reverter estragos tão complexos? Tá havendo um grande confronto de narrativas aqui e esse confronto tá deixando as pessoas mal informadas mais perdidas ainda, porque não tem espaço pra uma compreensão mais complexa das questões políticas e sociais envolvidas nessa situação toda. 


Ouvindo as pessoas por aqui nesses dias, na rua, passando nos caminhos, na fila do mercado, nas conversas dos vizinhos.. estão em conflito. Não porque prenderam bolsonaro (talvez alguns, mas nem todos), ou porque soltaram Lula. Mas sinto que paira no ar um grande senso de “quem manda na política é a elite, seja ela progressista ou fascista”. E o pobre sempre como massa de manobra. Pra mais ou pra menos, mas sempre. 


As mass media conseguiram fazer uma lavagem cerebral tão bem feita na sociedade, mas tão bem feita (me refiro a como trataram e usaram os temas da lava-jato e do mensalão), que todo mundo acreditou que Lula realmente deveria ser preso mesmo. E aí, prenderam Lula. Quem era de esquerda, se conteve; quem era de direita, comemorou; e quem era só lulista e acreditou no jogo da mídia, se virou contra ele e contra o PT. Lembro que na prisão de Lula, muita gente pobre também comemorou, porque viram nessa atitude uma “justiça frente aos podres políticos”, obviamente uma grande ilusão construída por anos a fio de lavagem cerebral pela mass media. Aí soltaram Lula. Comemoramos! E agora ele é presidente. 


Aí, tou tentando lembrar aqui: a globo se desculpou pela cena que fez, incansavelmente, dia após dia, no JN e em todas as plataformas possíveis, sobre a lava-jato ou sobre o mensalão, com objetivo de criminalizar Lula e o PT? Ou pior: adiantaria pedir desculpas? Assim como se desculparam por apoiar a Ditadura de 64-85 ou a eleição de Collor? 


Tenho sentido uma aura parecida acontecendo agora com essa cena toda com o bolsonaro. Tou vendo aqui: muitas pessoas estão céticas, incrédulas. As pessoas não querem acreditar que estão sendo enganadas. A prisão de Lula foi real, porque a lavagem cerebral foi eficiente. Soltaram Lula: um grande jogo político. E agora prenderam bolsonaro: e aí escuto na periferia “não é verdade o que tão falando de bolsonaro”. É óbvio que as pessoas vão achar isso. Presta atenção na dinâmica social e em tudo o que aconteceu na dinamica mídia-política-sociedade desde a primeira eleição de Lula. Ninguém quer se sentir marionete da mídia, e escolheram um evento para acreditar: acreditar na culpa de Lula e na inocência de bostonaro. E a responsabilidade é, em grandíssima parte, das mass media. E isso, pra mim, é mais preocupante do que celebrativo. 


Pra maioria das pessoas que escuto fora da minha bolha (minha bolha que vota na esquerda junto comigo), “bostonaro não é ladrão” (pasmem pelo conteúdo da palavra, como se a questão fosse só ser ou não “ladrão” - em contraponto com “Lula ladrão”), que bolsonaro “não merece isso que tão fazendo com ele”, que “ele tá sendo perseguido sim”. A moral hipócrita de “deus, família e liberdade” está mais do que ativada na ética social convencional e conservadora de grande parte da população, porque é o discurso conhecido, que agrega sentimento de pertencimento à uma convenção cristianizada e convencionada. Infelizmente bostonaro soube fazer bem esse papel de bom samaritano, sustentando o discurso dos bons costumes e do cidadão de bem, apoiado no ceticismo do povo sobre a mídia e sobre a inocência de Lula. 


Sinceramente: peço a tudo quanto é força, que eu esteja muito errado.. ou só noiado mesmo.. mas, sabe qual é meu maior receio? É transformarem bostonaro numa espécie de mártir. De qualquer tipo. Mesmo um mártir cagão. Mas um mártir. Contra “quantos mártires de esquerda popular”, onde o povo possa repousar suas angústias e celebrar suas esperanças? A esquerda popular, radical, não tem mais uma pessoa em posição política que abranja à classe periférica como um todo, que é a maioria do eleitorado. A esquerda não faz mais trabalho de base. A esquerda não tem mais mártires. E somos tantos intelectuais na esquerda, e são tantas as teses, mas nenhuma estratégia real aplicável na prática (com raríssimas exceções, como os movimentos culturais nas periferias, por exemplo, como a capoeira ou a cultura popular, contra a disseminação do neopentecostalismo em cada esquina). 


Sinceramente: estou preocupado. Não pelo encaminhamento da prisão do bostonaro ou pela cena em cima de uma tornozeleira. Estou intrigado porque, pra mim, primeiro: nosso sistema prisional é uma grande falácia burguesa que não resolve absolutamente nada do ponto de vista de uma reconstrução social; e, segundo: porque o bostonaro não vai ser mesmo preso como muitos gostariam que fosse. Vai vendo. Ele vai no máximo ficar numa prisão domiciliar, recebendo todas as regalias possíveis, que nem Collor ficou. E acredito que não vai ficar nem metade do tempo que deveria ficar. 


Mas enfim, talvez eu me preocupe demais mesmo. Espero que seja só nóia mesmo, de quem já foi da favela e sabe como é lá dentro e que hoje não é mais. Ou nóia de quem hoje vê espectros da política pra além da classe média hipócrita que também só vê o seu umbigo (seja da direita ou da esquerda). 


De todos os modos, ainda acredito que em 2026 a luta é só uma: reeleger Lula ou quem ele indicar, porque infelizmente, não haverá ninguém de tamanha influencia que combata as forças do fascismo da extrema direta que terá toda a máquina informacional digital nas mãos. E mesmo sabendo que teremos uma guerra informacional e digital completamente vencida pela extrema direita (que é quem detém o capital nesse país) e sabendo que a esquerda abandonou a luta de base, ainda me resta acreditar que só vou conseguir celebrar mesmo, brindar de verdade, quando a extrema direita perder a eleição de 2026 e não se aplicar, em seguida, um golpe de estado, e nossa democracia falha, esburacada e hipócrita, continuar em seu caminho de pedras. Aí a gente celebra e vai pensando no que fazer. Muita coisa pra dizer sobre isso, mas mais ainda a se fazer. Um congresso extremista direitista gigante pra desmontar. Muitas guerras intra-institucionais pra ganhar, fazendo nosso trabalho diário de formiguinha e se alimentando com a esmola da emancipação de 5 a 10% da população. 


Nesse caminho, desejo força pra gente. E alegria nas brechas. 

Comemorar, sim, como modo de resistência e de olhos abertos.



 

sexta-feira, 11 de julho de 2025

A POEIRA HISTORIOGRÁFICA E OS ÁCAROS DO TEMPO

 


das runas às ruínas
aos búzios feiticeiros
da traça monocromática
à poeira historiográfica
varrida pelo vento
com os ácaros do tempo 
e sua dermatite atópica
na pele dos que negam 
à história sua
qualidade de historiadora-
docente comum à lama
e ao caos de si
natureza nas coisas,
desejo infiltrações
que tragam 
no mofo e na ruga 
do lodo das brechas 
das rachas e muros
do imprevisto
água potável de vida
e vida melada de força 
pra gente que quer
comer
histórias 
que pulsam vivas
com satisfação só
por querer ser e sorrir
e se derramar água
nos desertos do
acontecimento
do corpo
que também é 
templo e fumaça

A poeira histórica e os ácaros do tempo com sua dermatite atópica na pele dos imortais tem negado à história sua qualidade de historiadora-docente comum à lama dos mangues e ao caos dos guetos de si como ordem natural das coisas.


Eis aqui uma crítica historiográfica indiciária que se tece a partir da correlação entre o que se enaltece enquanto discurso histórico e o que se estabelece enquanto verdade histórica, relacionando uma tentativa rizomática de compreensão dos conceitos de cultura histórica e consciência histórica, comunitária (senso comum) e institucional (escolar), observada a partir das relações e dos movimentos de aprendizagem da história ensinada e tecida no seio da comunidade social e institucional, aprendida culturalmente e em como essa relação molda saberes históricos sociais. 


O que se quer com essa conversa é discutir sobre o que acontece com as narrativas sobre a vida nas relações vivas, entre como acontecem e como elas chegam e fazem parte de nós e como nós as interpretamos. 


A construção dos discursos de verdades históricas está direta e sistematicamente acoplada aos regimes das formas de seleção, legitimação e distribuição do conhecimento no tempo pela seleção da memória que se quer lembrar intencionalmente, veiculada pela e na própria relação entre as coletividades. 


O conhecimento histórico da vida prática e cotidiana é concomitantemente realocado a novas perspectivas de consciência histórica, ressignificando o conhecimento histórico social, ora se distanciando, ora se aproximando do saber histórico institucionalizado. Quando o que se diz nas escolas sobre história, por exemplo, está muitas vezes desconectado da realidade prática do cotidiano da vida prática, mas buscando moldar essa vida a partir das narrativas.


O conhecimento histórico é geralmente mobilizado como práxis de transformação cultural. Mas uma grande parte desse conhecimento caminha por fora das sistematizações institucionais, e atuam como legitimação do poder político para o conhecimento, já que a História, na prática da vida, dá sentido ao espaço-tempo dos sujeitos a partir das demandas da presentificação, dos modo de sujeitamento, enquanto considera toda a relação humana, de si consigo (si-mesmo) e de si com o mundo (acontecimento), mediada por significados constantemente re-estabelecidos e co-criados culturalmente.


O que se entende por história, no dia a dia, geralmente está conectado com o que lhe é informado sobre os acontecimentos no tempo, conectando passado e presente. Essa explicação geralmente é oferecida através de performances validadas através de ferramentas de comunicação acessível, mas controlada em sua produção, reprodução e divulgação.


Atento à questão da pluralidade cultural e à influência do cotidiano e do conhecimento “comum” como sendo fundamentais para se problematizar a História institucionalizada, professores e pensadores da história chamaram atenção para o fato de se querer que a história da vida prática seja influenciada e definida pela história institucionalizada ou contada nas pesquisas por cientistas. Mas geralmente a gente olha para a história ensinada institucionalmente como se ela acontecesse de modo descolado da vida prática, do nosso dia a dia, e isso tem a função de manutenção de poder, porque é assim que se relaciona o saber popular como algo negativo e sem valor, e não como um campo de saberes e práticas que contribuem para a compreensão de si, do outro e do mundo num movimento de resistência contra opressões.

  

Qual a função social da história? 

Qual a função social da pesquisa histórica?

Qual a função social do ensino de história? 


A História está abalada porque vem perdendo seus paradigmas, estabelecidos a partir de um cientificismo e de um determinismo, de um positivismo e de um metodologismo propedêutico, positivo, cartesiano, linear e vertical, mesmo quando abre a novos cenários de interpretação do conhecimento já legitimado, pois se utiliza de um mesmo molde de mentalidade para se pensar e tecer a História enquanto sentido social.


A História vem passando por constantes e múltiplas crises de ressignificação, já que não é (mais) possível (re) interpretar acontecimentos da vida prática cotidiana através de narrativas históricas legitimadas, pois a vida social prática no mundo opera nas infinitas interpretações possíveis do passado, que, por sua vez, atua como crítica minuciosa à própria vida prática, assim como uma tiragem de tarô, enquanto sujeitos buscam desconstruir e ressignificar a vida imersa numa demanda social prática, a partir de constructos simbólicos tecidos na e por novas ou outras narrativas práticas e vivas.


A história é viva.


Muita gente que está reescrevendo a história agora, está reescrevendo a partir de outras e novas consciências históricas, trazendo à baila outras e novas culturas históricas, e isso está remodelando as histórias contadas em outros momentos, mudando os fatos que antes pareciam fixos no tempo. Por isso que a gente diz que a história é viva. Porque finalmente se percebeu que quem sabe sobre sua história e conta ela, encontra poder para se defender do que não deseja que lhe afete e se exalta.


Para isso que serve a história. Por isso que ela é tão importante. Mas mais ainda, por isso que é tão importante dar voz a quem nunca as escreveu e legitimar o resultado dessa provisão. De maneira bem simples, diz-se que a história serve pra gente se lembrar e aprender, para não repetir os mesmos erros do passado no presente. Uma terapia do coletivo. Mas mais que isso, ela é uma arma (ou um escudo) para quem foi esquecido. Diz-se por aí que a intenção da narrativa história fica mais explícita a partir do que ela não diz, e não do que ela diz.


Aqui a história se mistura com o papel do seu próprio ensino. E esse movimento de aprendizagens não se trata de um destino, pois tem ligações com os tempos, enquanto dialoga com o presente e suas dúvidas. Não é estático, pois a cultura da vida e suas possibilidades de desconstrução e ressignificação do conhecimento são cabais para o discurso preso aos ditames da ciência moderna e aos esquemas metodológicos e/ou teóricos de autores. 


A história e seu ensino estão o tempo todo em refazimento. Por isso não dá pra olhar para estrutura da escola e do ensino de história e aceitar que continuem como estão.


Os esquemas teórico-metodológicos (o jeito que se pensa e se faz a história estudada e ensinada) dos seus autores e teóricos é que ainda baseiam a estrutura do conhecimento histórico até aqui legitimado institucionalmente na escola, já que estes esquemas modula um paradigma e este paradigma gera um modelo de orientação para a produção de conhecimento válido, abolindo outras perspectivas, bem na perspectiva imperialista de ver a estrutura da construção da vida, como se algo sempre que tivesse que dominar e oprimir para sobreviver, sendo impossível conviver em conciliação com outros modelos de verdade (e outras verdades) diversas.


É por isso que um modelo historicista sempre estará abalado quando enquanto sobrevive somente em função de uma avassaladora desvinculação com o mundo prático da vida, quando da construção da verdade histórica e, fundamentalmente, da problemática da ‘distribuição dessa verdade’, que se refere (neste modelo absoluto) a prioridades de poder político, sintetizando a História através de verdades engessadas, não funcionais às demandas comunitárias coletivas e pessoais. 


Muitas vezes, o que se escreve e se constrói enquanto conhecimento histórico só consegue validar quem sempre já foi e ainda é validado; só consegue emancipar quem já é emancipado. 


Na esteira dessa crítica, compreende-se que, ao se ressignificar o discurso da verdade do conhecimento histórico e seus regimes de verdades por meio de movimentos vivos de aprendizagens múltiplas da história, assim como da história com função de elaboração da vida prática social, torna-se possível e preferível se refletir e problematizar profundamente a percepção histórica do presente possível a ser reconstruído da/na educação histórica e, assim, tecendo consciência histórica através da didática da existência, em suas percepções doxológicas e, fundamentalmente, epistemológicas, a partir de um movimento prático da História, da leitura e análise histórico-elaborativa no seio das relações sócio-culturais comunitárias. 


É fundamental que a gente olhe para as histórias que nos contam e para as histórias que contamos a nós mesmos, não do ponto de vista simplista da notícia bem produzida e bem feita, mas do ponto de vista de onde ela vem e para quem ela serve, sua intenção, seu objetivo. Muitas vezes nossa intuição sobre situações nos ensinam muito mais do que uma racionalização exacerbada, para além dos traumas. Mas podemos estar atentos a esse movimento.


Esse conhecimento histórico que nasce na vida prática e tem função social e cultural de modular a memória (o que deve ser lembrado; o que deve ser esquecido; como; quando; porquê e por quem, em função das demandas práticas sociais, atingindo e modelando estas através de seu regime de verdades) pode desconstruir e ressignificar arquétipos históricos, individuais e coletivos, conscientes e inconscientes, quando essa memória é reelaborada num processo conjunto de refundação da própria identidade sócio-cultural nos movimentos de ensino-aprendizagem da história, (re)tecendo identidades e refazendo o caminho da construção da ‘memória verdadeira’, através de uma sincronicidade relacional que se materializa através de uma metodologia que articula estruturas existenciais e filosóficas críticas, nas formas dos acontecimentos da História.


A memória é o tempo todo manipulável, misturada e enigmática. Ela nunca é a lembrança fidedigna do que a gente acha que lembra com o que aconteceu. Nem pessoalmente, nem coletivamente. Existe uma mistura mágica de tempos-espaços-imaginação nesse movimento. Quanto mais longe a lembrança, mais misturada ela é. Quanto mais sensível também. Quanto mais coletiva, mais influenciada por muitas visões diferentes. E por aí vai. 


Os movimentos de busca por outras interpretações metodológicas do conhecimento histórico acontecem, fazem parte das ambiguidades de um tempo e de uma situação, pois a História não é estática e nem atemporal, mas contextual. A História conta, vive e se esquece. Os tempos contemporâneos nos mobilizam sem referências e com excessos de referências. 


Hoje temos muita informação e quase nenhuma referência. Toda e qualquer opinião, mesmo que seja ela completamente contrária uma da outra, sempre terá ao seu dispor uma infinidade de formas de discursos que a defendem e te convencem de que ela é a verdade. Porque, nesse sentido, não existe a verdade histórica. Ela é múltipla. Depende da intenção.


Daí, as tensões e os paradigmas desencontrados. Entender historicamente esse excesso de referências, ou sua falta, muda o paradigma da lida, da relação com a verdade, com o fato, com o acontecimento e, consequentemente, com a vida prática, enquanto o abalo é grande, das mercadorias que reinam, dos fetiches de manutenção do status quo, que é diferente de resistência. 


Resistência é criação. Aí o tempo não segue linear porque a simultaneidade é condição. A simultaneidade e a diversidade operam através dos entrelaçamentos, das idas e vindas da vida. O historiador que se prende na divisão entre prática (escrita técnica) e teoria (filosofia do pensamento) morre, porque a sociabilidade se esfarrapa com as tecnologias dominando e derrubando padrões. 


Há de se trazer a vida, criar uma intimidade com ela. Não dá para ficar só no academicismo. E, aqui, trata-se de entender o processo da história como historiadora-docente que é e, assim, localizar a função social do professor no métier do pesquisador. 


Trata-se de uma luta social de ocupar lugares e espaços de importância política. As mulheres negras. Povos afro-pindorâmicos. Pessoas trans. Não binários. Docentes. Ciganos. Macumbeiros. Animais. Florestas. Rios. Nada está fora dessa luta porque não somos de classe alguma. Precisamos nos juntar, nos melar, de terra, de água, de gozo, de vida. Só o suor já não basta mais.


A perspectiva metodológica da história como historiadora-docente desperta uma chave, uma janela, um gap para a possibilidade de vislumbrar outras formas de construção do discurso de verdade histórica e de redirecionar seus múltiplos regimes de verdades por meio de uma análise profunda das intencionalidades de produção dessas verdades, uma sincronicidade entre acontecimento, memória e presente, proporcionando ao leitor/construtor que constrói/lê junto esse conhecimento, novas formas de se localizar no espaço-tempo de sua existência.


No movimento das aprendizagens da História se diz de uma realidade e de uma não-realidade imediatas, presentes no fractal rizomático do acontecimento, que pode ou não carregar mensagens específicas que conduzem à interpretação histórica para uma ou outra direção, sem atribuir poder absoluto de verdade à uma origem específica. 


Mas temos que estar atentos. Marx não é profeta, mas não dá para negar a contribuição da compreensão da organização da sociedade em classes sociais. A alegria, a vida, o cu, a buceta, gozar, comer, trepar, cantar e tocar pode ser resistência, pode ser rebeldia contra uma ordem, uma alegre rebeldia, a alegria e a festa como rebeldia e resistência, tudo é força.


Cada realidade social possui uma lógica inclusiva para análise e criação de seus atributos de sentido e essa variabilidade pode ou não alterar os cursos da interpretação histórica dependendo da contextura de produção e análise do acontecimento, já que somos co-partícipes da lógica das possibilidades e das suas múltiplas intencionalidades. 


Aqui, a recombinação de aprendizagens da história como docente tem um caráter perceptivo ético, que se constitui na relação acontecimento-mundo-memória e geralmente faz sentir o processo de significação das funções sócio-comunicativas, justo no processo da formação cultural.


O modo de ser no mundo já é em si uma maneira de interpretá-lo e esta interpretação é uma tentativa de dar-lhe sentido que faça compreender-nos como parte dele. A negação desta potencialidade da interpretação é, no fundo, uma negação do próprio ser e é nela que se fundamenta a exploração humana, dizia Rüsen.


Não existe uma “realidade” que seja interpretada de diferentes formas, mas sim uma “realidade” que é construída de diferentes formas, com diferentes perspectivas e valores, que criam seu próprio cosmos explicativo: cada qual pretende possuir validade universal e se concebe como a única forma de interpretação válida. Na linguagem, na religião, na arte, na ciência, na História, o ser humano não pode fazer mais que construir seu próprio universo – um universo que lhe permite entender, interpretar, articular e organizar, sintetizar e universalizar sua própria experiência humana, já dizia Cassirer.


Desejo aqui infiltrações que tragam nas brechas dos muros do tempo água limpa de vida e vida melada de força pra gente que quer uma história que pulsa no tempo da transversidade de existir sem ter que dar satisfação por ser feliz, sorrir e se divertir.


    Foto: Francis Azevedo


quinta-feira, 3 de julho de 2025

CU



PIM. 
Nua. 
Mesa. 
Esquizita.
Desumanizada. 
Incômoda. 
Que não é. 
Nem burguesa.
Nem rústica.
Nem de campo. 
Nem de cozinha (talvez mais). 
Nem de trabalho (talvez demais). 
Que não presta. 
Pra nada. 
Inútil.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

O DESAFIO DO SENTIDO DE MARIÁ


PARTE 1 



Imagine uma comunidade onde a pesca é a principal atividade de vida das pessoas. Mais especificamente a criação de maríscos e camarões. Produção e venda. E lá nessa comunidade tem uma escola municipal, cujos profissionais e estudantes estão cansados dela, porque ela não tava mais dando conta das reais demandas daquela comunidade e a sensação de frequentá-la era de perda de tempo. Ao mesmo tempo, a escola é extremamente importante nesse contexto porque muitas vezes era a única rede de apoio que as pessoas têm para criar seus filhos. Mas muitas crianças estavam irredutíveis: não queriam mais ir pra escola. E quando íam, fugiam, causavam. 


Nesse contexto, Mariá, marisqueira, tem uma ideia: buscar parceires para entender o que está acontecendo ali (para além dos jargões e achismos comuns da sociedade sobre essa situação, como por exemplo “ele não quer nada”; “os professores não têm pulso”; “os professores não querem trabalhar”; “a mãe é mal educada igual”, “é abandonado pela família”, etc.) e fazer uma análise profunda daquela comunidade, entender sua cultura, sua história, seu modo de vida, seus saberes, seus sensos comuns, buscando compreender questões pessoais, sociais e políticas que estão afetando essas pessoas. Aos poucos María foi se fazendo em grupo, junto com várias outras pessoas da comunidade, e esse grupo vai conversando com mais e mais pessoas, buscando entender as reais demandas da comunidade.. então María começa a refletir sobre a escola.


- Por que a escola não faz mais sentido? - se perguntava.


Mariá queria atrelar as demandas sociais à escola. Ela não sabia disso, mas sentia. E precisava de ajuda. O objetivo era envolver a comunidade com a escola a partir de práticas educativas que atribuíssem autonomia viva e real à prática de vida das pessoas dessa comunidade. Mariá queria que essas pessoas se sentissem participantes e construtoras da sua própria história em coletivo, com a ajuda da escola, buscando fazer da escola instrumento e ferramenta política da comunidade à serviço da própria comunidade, às suas demandas reais, de forma autônoma e potente, significante e pertencente, reduzindo-se a distância entre teoria e realidade, e não permitir que a escola simplesmente fechasse ou servisse somente de depositário de crianças.


Dorinha, professora de María, e que estava exausta daquela vida docente, compreendeu o sentido de Mariá quando a ouviu contar da sua escola diferente. Dorinha era da atividade de base da comunidade, professora e mãe na comunidade, e começou a perceber que a escola poderia mesmo ser um local de unir as pessoas e servir à comunidade.


- Ô menina.. olha, me conta aí, como é essa tua ideia de escola diferente?


Ali Mariá e Dorinha começavam uma amizade profunda. E se propuseram a pensar algo simples e revolucionário: mudar a alma da escola.


- As mudanças que você propõe.. - disse Dorinha.. - ..a gente que é professor pode ajudar.. a gente tem domínio do que nossa disciplina pode somar. E temos você do outro lado, Mariá. Você também é a comunidade e o que ela precisa. 


Os dias se passaram e Mariá e Dorinha foram conversando e maturando as ideias. Depois de um tempo, propuseram uma reunião entre as lideranças da comunidade. Nessa reunião, elas explicaram sua ideia: gente, a escola pode ser boa. e podemos salvar a escola, não é ela que vai nos salvar. Escutem: a gente produz marisco e camarão. Vocês têm um trabalho enorme pra construir o que precisam pra esse trabalho. 


E a escola pode ajudar - solta Dorinha.


Vejam: as disciplinas escolares podem servir diretamente à piscicultura, à maricultura e à carcinicultura. Junto com o fundamento disciplinar e dos saberes populares sobre essa prática, a disciplina de ciências poderia estudar a criação, a reprodução, o cuidado, o manejo sustentável dessa prática, trabalhando juntamente com os mais velhos que já dominam essa prática, aprendendo com eles. Através da aferição da temperatura das águas, da medição da acidez, da oxigenação, do volume, etc, a disciplina de ciências se debruçaria sobre as demandas técnico-científicas da comunidade, junto com a matemática. A matemática e a física podemos usar para medir a construção dos criadouros, das casas de trato, calcular o volume da produção de resíduos para aplainamento do chão e construção civil, construção de casas, etc. As contas de somar, subtrair, multiplicar e dividir interagiriam com o dinheiro das vendas dos mariscos e camarões produzidos e as compras de insumos; percentuais, gráficos e planilhas fariam parte da organização financeira. A geografia pode oferecer um entendimento da tessitura organizacional do terreno para esta prática; fazer levantamentos dos aspectos físicos e sociais da formação da comunidade; investigar os tipos de solo e de água no entorno e reorganizar manejos. A disciplina de português pode contribuir na interpretação de toda a legislação dessa magnitude, alfabetização através de leituras sobre esses assuntos.. e leitura e interpretação de leis, editais de financiamento e de fomento à cultura da pesca, da maricultura e da carcinicultura. A tecitura histórica da comunidade ficaria com a História; história de vida das pessoas, seus saberes, sua cultura, seu senso comum, suas crenças, suas vidas; colaboraria numa interpretação contextual profunda sobre projetos políticos de financiamento para manutenção dessas atividades a fim de justificá-los historicamente, fazendo levantamentos sobre o formação e funcionamento de cooperativas e formas de organização social autônomas das comunidades de trabalho no Brasil, propondo organizações autônomas para os processos do contexto das demandas daquela própria comunidade, investigando a importância da pesca, da maricultura e da carcinicultura para a permanência e sobrevivência daquela comunidade, sua tradição e o respeito à estrutura e à organização social ali construída, etc. A educação física regeria toda a sua potencialidade esportiva, cultural e de respeito com o outro e com as regras de uma organização. Aulas (e jogos) de futebol, de capoeira, de dança. A música. As artes metida na área da produção cultural da comunidade, pleiteando sempre espaços para manifestação musical, visual, performática. E dentro da educação física e das artes, história, português, geografia, matemática, enfim.. tudo tá dentro de tudo. 


As lideranças da comunidade estavam deslumbradas com as ideias de Mariá e Dorinha. Eram ideais que acreditavam nas pessoas. 


Destarte, Mariá e Dorinha estavam certas de que o sentido de educar dessa escola poderia contribuir consideravelmente com a melhora significativa da qualidade dos processos e procedimentos de aprendizagem des estudantes da escola daquela comunidade. Uma transformação social real a longo prazo finalmente era vislumbrada e alimentada. O próximo passo era começar a fazer. Botar a mão na massa. E, pra isso, um segundo passo: Mariá e Dorinha buscaram uma reunião com es profissionais de educação daquela escola.


FIM DA PARTE 1

quinta-feira, 15 de maio de 2025

HISTÓRIA GENERALISTA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INSTITUCIONAL DA CRIANÇA NO BRASIL (PÓS) COLONIAL

 


Do ponto de vista das ideias pedagógicas e da aplicabilidade da educação no Brasil, num primeiro momento é possível dizer que aproximadamente durante todo o primeiro século de colonização, dois Planos de Instrução constituíram a chave central dos ideais pedagógicos no Brasil: o plano do Padre Manoel da Nóbrega e do Padre José de Anchieta. Nóbrega tentou conduzir a aplicação de uma educação no Brasil da época (considera-se o Brasil da época pequena parte do litoral de Pernambuco, da Bahia e de São Paulo a partir de 1533) fundamentado em aspectos estratégicos do agir sobre as crianças para chegar aos adultos. Os colonos que vinham de Portugal para o Brasil traziam crianças, a maioria delas órfãs, que por sua vez, estudavam com os nativos, uma educação puramente jesuítica de doutrinação via catequese, juntamente com o aprendizado básico de leitura e escrita do português (para os portugueses e nativos), somado ao aprendizado básico de agricultura e pecuária (só para os nativos). Um dos trunfos do plano de Nóbrega se constitui na grande interação entre as crianças nativas e as europeias. Em síntese, a ideia de Nóbrega é doutrinar a criança, para que esta, por sua vez, doutrine seus familiares, disseminando a verdade católica cristã e de subserviência dos nativos aos portugueses. Pensando nessa interação entre as crianças, dois colégios foram fundados: o Colégio dos Meninos de Jesus da Bahia, e o Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente. 


Eis a concepção pedagógica tradicional religiosa na versão católica da contra reforma, materializada na institucionalização da educação, já na segunda metade do século XVI, que se resume em formar os nativos para que estes sejam submissos à doutrina católica e conformados com os aspectos disciplinares da moral católica e intelectuais europeias daquele momento (a partir de 1549). Com o Padre José de Anchieta, a pedagogia tomou forma pelo teatro e pela poesia, que construíram a imaginação maniqueísta das crianças, num processo de doutrinação católica pela palavra, pelas diversas formas de discursos, através da condenação de práticas nativas que eram constantemente associadas ao demônio (Anhangá) e não a Deus (Tupã), simplificando e generalizando (homogeneizando) a cultura indígena.



Mas é mesmo a partir de 1599 que começa a acontecer certo processo de institucionalização da educação jesuítica nos pontos mais populosos do Brasil, sistematizado a partir da aplicação de uma legislação racionalista extremamente eurocêntrica, chamada Ratio Studiorum, organizada pela metodologia derivada do Modus Parisiensis, já trabalhando com crianças em classes, com a realização de exercícios escolares, mecanismos de incentivo ao trabalho escolar – como castigos corporais caso não trabalhassem, e com premiação, louvores e condecorações caso trabalhassem. Tal metodologia era fundamentada por uma base escolástica, pautada na ideia da leitura, repetição e memorização. Essa fundamentação, por sua vez, traduz uma visão do homem como ser constituído por uma essência universal e imutável – o homem é produto de Deus, já vem pronto, e sua educação deve desenvolver o lado cultural natural do homem e servir (a educação) para transformar o homem naquilo que ele já nasceu para ser. Logo, a função da educação seria moldar a existência particular e real de cada educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser humano.


O tradicionalismo pedagógico convertido em uma educação estrita e absolutamente religiosa se mantém até meados do século XIX, quando começa a coexistir com uma incipiente pedagogia que se pode chamar de leiga – fundamentalmente a partir da República, falaremos disso mais adiante –, embora ainda uma pedagogia que mantém seu núcleo funcional pautado no tradicionalismo pedagógico religioso (presente no Brasil nos últimos 300 anos). Quando da ascensão do iluminismo na Europa, procria-se uma racionalidade científica e um instrumentalismo filosófico, fundamentados através e a partir da lógica industrial europeia. Na prática, esse processo demorou pelo menos uns 150 anos para refletir diretamente na prática pedagógica no Brasil – só por volta dos anos do populismo e principalmente durante o regime militar que nossa prática pedagógica se estrutura numa função industrial de fato, disseminada Brasil a fora a partir de uma pedagogia co-criada na lógica estadunidense do mercado industrial e comercial (falaremos disso mais adiante). 


Com o fechamento dos colégios jesuítas, e com a coroa portuguesa agora presente no Brasil, aos poucos as crianças passam a ser redirecionadas em seus valores, deixando de lado a exclusividade religiosa na educação, fazendo com que essa religiosidade passe a coexistir com uma visão um tanto mais “esclarecida”, embora ainda extremamente despótica e, de certa forma, ligada aos valores morais religiosos, materializados na descendência consanguínea entre os nobres da corte do agora Brasil Império. A verdade é que as crianças, na prática, serviam como peso moeda nas negociações culturais, e os fortes processos de aculturação do povo nativo e de enculturação do jovem português que aqui morava fundou o modo de pensar das próximas gerações, no que se refere aos grandes centros povoados – praticamente 10% do território brasileiro. No restante, não havia escolarização nesses moldes; quando havia, ainda continuava na lógica da catequese, sendo este o principal meio educativo no território como um todo até aproximadamente meados do século XX. 


Após a consolidação do Império, é só por volta da segunda metade do século XVIII, é que uma espécie de educação básica começa a se consolidar institucionalmente no Brasil, consequenciada por uma espécie de “iluminismo brasileiro”, fortemente desenvolvido no período do Marquês de Pombal. Mas durante o reinado de Maria I, Pombal é demitido, e o retorno dos jesuítas às batutas escolares, assim como os párocos, retomam as rédeas da educação no Brasil através das aulas régias. Fica, contudo, no imaginário social e político dessa porção do Brasil, certas ideias pedagógicas leigas, sistematizadas através do ideário de uma educação laica e de um país cuja intelectualidade estaria racionalmente desenvolvida, pensamentos esses derivados daquele “iluminismo brasileiro” da época de Pombal. 


Mas é só com o advento da República (1889), até os anos 1930, que o ideário pedagógico no Brasil – agora uma maior parte territorial, formada inicialmente pelas urbes – começa a misturar ensino religioso com ensino leigo, influenciado fundamentalmente pelos pensamentos Liberais e Positivistas, consequências do capitalismo industrial e de mercado em polvorosa na Europa desse momento. Logo o interesse no Brasil dos finais do século XIX passa a ser estimular a laicidade do ensino, para que se formem logo escolas com modelo industrial, a fim de servir à nova lógica do sistema de mercado – isso tudo somente nos grades centros urbanos, que receberam as grandes levas migratórias campo-cidade durante o processo de industrialização inicial no Brasil. 


Nesse período de ebulição política (Iluminismo, República, migração campo-cidade, formação urbana) uma Assembleia Constituinte é convocada por Dom Pedro I, que estabelece um documento de instrução pública cujo ensino das crianças fica estabelecido a partir dos 9 aos 12 anos de idade – o chamado 1º grau de instrução comum. Contudo, o desenvolvimento de um ensino universitário sempre foi visto com mais urgência pela magistratura do Brasil, obviamente por questões sócio-políticas (cursos de Direito, e mais tarde Medicina e Engenharia), deixando que a prática do ensino das crianças na maior parte do Brasil continua e fortemente voltada e estruturada para e em torno da religiosidade.


Já a constituição de 1824 destaca em seu texto que agora deve ser gratuita a instrução primária para todos os cidadãos. Após essa outorgante, vários projetos políticos tentaram organizar uma sistemática para a educação no Brasil, que sempre ficavam barrados na impossibilidade prática de seu desenvolvimento, seja por questões de interesse político, seja por embates culturais. O que fica para as crianças, nesse momento, é aprender a ler, a escrever, e aprender os fundamentos básicos de aritmética nas escolas de primeiras letras, legisladas sobre um projeto de escola elementar, espalhando-se pelas cidades e vilas mais populosas do Brasil – ou seja, até 1827, não havia qualquer escola no Brasil que não fosse o grande centro político e, historicamente falando, até meados do século XX, praticamente não havia escolas no Brasil como um todo, comparado ao que temos hoje. Quando havia, os princípios da moral cristã é que fazia parte do currículo legal, juntamente com apender a ler e escrever, as 4 operações de aritmética, umas práticas de quebrados, decimais, etc. 


Em 1834 a competência para legislar sobre as escolas passa para as províncias, que estão ainda menos preparadas para essa tarefa. É nesse momento que se estabelece o princípio da obrigatoriedade do ensino, este sendo seriado e simultâneo, através da Reforma de Couto Ferraz, responsabilizando os pais com multas e prisões caso estes não estimulassem seus filhos a estudarem em escolas a partir dos 7 anos de idade – com exceção dos filhos de escravos. Após esse momento, os próximos projetos de reformas políticas educacionais se preocuparam mais com um higienismo social e moral religioso nas instituições do que propriamente com o conteúdo do ensino ou mesmo com uma legislação mais coerente com a realidade cultural brasileira, mantendo o padrão extremamente elitista dos projetos, enquanto a grande maioria do Brasil não tinha escolas e as escolas que existiam, em sua maioria, mantinham majoritariamente um padrão moral religioso. Destaque para a Reforma de Leôncio de Carvalho (Decreto 7.247/79, de 1879), que estabelece a obrigatoriedade do ensino até os 14 anos, assim como a criação dos jardins de infância opcionais para crianças de 3 a 7 anos, e cursos de alfabetização de adultos nas províncias, também opcionais, juntamente com as faculdades de Direito e Medicina. A partir de 1888, com a “abolição” da escravidão, grande parte da mão de obra escrava passa a ser substituída por uma espécie de mão de obra assalariada e “livre”, fazendo com que a educação recebesse muito mais atenção da legislação, considerando a efervescência da segunda revolução industrial na Europa. Agora é função da educação, formar o novo trabalhador, num país onde a plena economia ainda era agrícola, e que na prática, ainda mantinha a moral católica, a alfabetização e a aritmética básicas como essência – e agora acoplando às instituições dos grandes centros urbanos, as ciências e certo conhecimento sobre profissões como prática.



Com o advento do regime federativo, a instrução popular passa a ser responsabilidade dos estados, e do Estado em conjunto só após o governo de Vargas. A grande verdade é que durante todo esse período, a educação no Brasil não se resolve, por questões de conflitos de concepções pedagógicas e políticas fundamentalmente, até a criação da ABE (Associação Brasileira de Educação, em 1924), que vai discutir e trazer, finalmente, algumas transformações, de fato, para a educação, esta mais voltada para a industrialização e comércio, a partir de Vargas.


Em 1932 é lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, cujos escolanovistas, através da legislação, entram de vez na corrida pela assunção da educação no Brasil, apoiados por Getúlio Vargas que, por sua vez, coloca a educação como questão nacional. Este manifesto, que em si se tratava mesmo de um Plano de Educação Nacional a pedido do próprio Vargas, traz em si muitas ideias revolucionárias para a época, realocadas inclusive na constituição de 1934. Mas na prática, essas ideias ficaram no papel, principalmente com o advento do Estado Novo em 1937. 


Desse Manifesto, destaco o tópico intitulado “O Papel da Escola e sua Função Social”. Entre outras questões, este tópico trata da necessidade de “incorporar instituições periescolares e pós-escolares na constituição da instituição escolar, dada sua importância na constituição educativa da sociedade”. O Manifesto destaca ainda que, por serem as esferas sociais que muitas vezes educam “até mais que a escola”, estas não deveriam se situar à margem dela; ao contrário, suas práticas deveriam complementar ou mesmo corrigir práticas escolares que por ventura não atendessem à demanda social de certos grupos sociais. Apesar desse ponto em destaque, o restante do Manifesto, ao que se pretendeu discutir acerca da educação a partir dos anos 1960, traz questões de ordem normal, convencional, como a laicidade, a gratuidade, a coeducação (não separação dos estudantes por sexo), e a obrigatoriedade da educação, assim como reforça a legislação da época, em que todas as crianças eram obrigadas pelas famílias e pelo Estado a frequentarem a escola dos 7 aos 17 anos. Um argumento para esta obrigatoriedade era a de que o Estado precisava manter uma organização da mão de obra (ordem) para o desenvolvimento do Brasil (progresso), e nada como a escola para fazer esse papel. Na teoria, a preocupação com a questão cultural e econômica se refletia em como se a criança que não fosse para a escola pudesse ser prejudicada pela ignorância dos seus responsáveis, ou até mesmo ser prejudicada por ser pobre e, assim, não ter acesso à cultura (das letras). A escola, então, serviria para a “criança ter cultura”. No todo, esse manifesto tece uma série de princípios que à época, fazem valer sua insistência, considerando as características desnumanas das políticas e da economia do Brasil até os anos 1930. O que quero dizer é que, esses princípios, hoje considerados extremamente retrógrados e obsoletos à luz das possibilidades educativas contemporâneas, na época pareciam ser princípios que, talvez, até fizessem sentido em alguns pontos, em alguns lugares, e em algumas situações, como por exemplo as concepções das bases psicológicas para a educação, pautadas na atividade constitutiva do sujeito, voltada de dentro pra fora, e não de fora pra dentro; ou dos princípios filosóficos, que se pautavam numa autonomia do educando, em função dos conteúdos e dos seus professores. Contudo, no que tange à estrutura geral, permanece tudo bem semelhante, a exemplo da educação da infância, que se dava obrigatoriamente dos 4 aos 6 anos; a escola primária para alunos de 7 a 12 anos; secundária de 12 a 18; com prédios fechados, salas de aula, alunos enfileirados, uniformizados, padronizados, homogeneizados; organização esta que está completamente dentro de um padrão convencional e obsoleto para o desenvolvimento de uma educação para a liberdade e para a autonomia. 


Dá para arriscar dizer então que, na prática, após o governo de Vargas, as escolas se transformam mais no sentido estrutural do que propriamente no sentido filosófico, fundamentalmente porque o Estado Novo, assim como toda ditadura, fechou-se à aceitação de certas filosofias de uma educação para a liberdade e autonomia, fazendo com que essas ideias não se materializassem, considerando revolucionário somente as ideias estruturais e técnicas, deixando de lado os ideais filosóficos e sociológicos, inclusive os próprios projetos escolanovistas – outrora apoiados por Vargas – foram abandonados, por se pautarem num cunho democrático.


Na era dos governos populistas pós-estado novo, adentramos num conflito entre escola pública e escola particular, aquela defendida pelos escolanovistas e pelo Estado, e esta defendida pelos empresários da educação privada e pela igreja católica – salientando, porém, que ambos se interessavam mesmo por um ensino técnico para o trabalho. Considero esse ponto importante porque é um ponto nevrálgico do processo de educação para liberdade e para a autonomia no Brasil, pois trata da possibilidade de haver certa liberdade institucional a partir da desestatização da educação. Infelizmente, graças ao contexto cultural da época – e de nossas heranças convencionais – o apoio às escolas particulares, nesse momento, jamais pudera ser considerado uma posição democrática de fato, pois a igreja católica, juntamente com os empresários da educação, alargaram uma corrida conjunta pela desestatização da escola, engendrando um elitismo proselitista da educação no Brasil, pautando suas ações somente nos princípios do lucro, deixando-nos uma herança cultural muito forte dessa posição até hoje, a exemplo da “indústria do vestibular” e da força da tradição convencional educativa das grandes escolas confessionais.


Os anos 1960 foram transformadores para a educação no sentido filosófico, pois trouxeram ideias e princípios educacionais pautados numa liberdade e autonomia plenas, à parte de uma luta entre empresas educativas (escolas particulares) e financiamento de mão de obra estatal (escolas públicas obrigatórias). Nesse momento, surgem pessoas de pensam e lutam por uma educação que considero transformadora de fato, a exemplo do Paulo Freire dos Círculos de Cultura, do Ivan Illich e do Everett Reimer da desescolarização, da adoção constante da pedagogia Montessoriana (a pedagogia do século da criança!) e do desenvolvimento das pedagogias Waldorf no Brasil – sendo, em minha opinião, esses os maiores movimentos revolucionários da educação no Brasil até hoje, por carregarem em seus ideais e em suas práticas educativas e de vida, a negação do maniqueísmo público-privado/ideologia-mercado, além de se fundamentarem numa educação para a formação cultural em todas as instâncias da vida do sujeito (Illich e Reimer ultrapassando essa perspectiva, chegando a permear por uma perspectiva nietzscheanista da educação, de uma antipedagogia ou mesmo uma psicagogia como pedagogia). Nessa perspectiva, atenta-se de fato para a formação da mentalidade das crianças a partir de uma liberdade real, fundamentalmente, indagando se estas deveriam mesmo estar longe dos cuidados familiares num tempo tão conturbado politica e economicamente. Contudo, essa proposta educativa foi pontual no processo de transformação educativo brasileiro, sendo mais comum nesse momento (dentro das alternativas às propostas anteriores) as propostas pedagógicas das teorias crítico-reprodutivistas, crítica dos conteúdos e histórico-críticas.


Com a chegada da ditadura civil-militar no Brasil, em 1964, sobressaem-se, obviamente, as pedagogias técnico-produtivistas, que deixaram uma herança tão forte na estruturação dos ideais de educação no Brasil, que até hoje a grande maioria das escolas, e dos próprios programas de educação do Estado, baseiam-se na estrutura básica repensada nessa época (já herdada estruturalmente dos projetos arcaicos anteriores), pautadas nos princípios de racionalidade, de eficiência e de produtividade. Obviamente que hoje há acréscimos nesses ideais convencionais, provenientes da ascensão da democracia, organizando-se uma espécie de “pedagogia técnico-produtivista democrática”, em que prevalece, na grande maioria das escolas públicas ou privadas, os muitos dos princípios sistematizados e fundamentados no regime militar.


Em 1971, através da Lei 5.692/71, oficializa-se o tecnicismo clássico nas escolas, a partir de uma reforma nos primeiros e nos segundos graus. Nesse momento, as escolas enxergam, nas crianças pequenas, adultos em potencial (trabalhadores potenciais, criminosos potenciais, industriais potenciais, intelectuais potenciais, políticos potenciais, etc.), estruturando uma sistemática militar nas escolas, através do resgate de características tradicionais dos quarteis, com hinos, juramento à bandeira, ações hierarquicamente autoritárias, etc., com objetivo de regularem esses “potenciais”. Tal modelo se fortalece muito pela necessidade de criação de mão de obra para o modelo econômico então vigente no Brasil (baseado no fordismo e no taylorismo), e a escola, mais do que em qualquer outro momento no Brasil, passa a ser a principal condutora dessa padronização, prevalecendo a ideia das crianças enquanto capital humano potencial


O princípio da racionalidade, nesse momento e nesse sentido, nega a toda a criança – pois o ensino escolar é obrigatório para todos –, a oportunidade de “perder tempo” – princípio da otimização –, pois o ócio passa a ser considerado ineficiente para a produtividade, fundamentando a pedagogia técnica nos princípios da neutralidade, da objetividade, e da operacionalidade. Em suma, o trabalhador deve se adaptar cada vez mais rápido ao processo de trabalho, na medida em que as crianças devem se adaptar mais cada vez mais rápido ao processo escolar. Assim, cada vez mais cedo, as crianças deveriam obrigatoriamente entrar na escola e lá permanecer até que saísse um adulto modelo para servir ao mercado dessa ebulição econômica. 


As ações de ler, escrever, contar, etc., passam a ser, então, oficial e largamente difundidos – além de legitimados pelo behaviorismo – em substituição à “perda de tempo” do brincar, das atenções às subjetividades do ser, etc., fazendo com que o processo educacional seja “mecanizado” através de uma forte organização racionalista e instrumentalista. A criança que não seguisse esse padrão – não soubesse ler e contar desde muito cedo – era considerada “atrasada”, e precisava se “adiantar” para alcançar os outros e permanecer igual a todos. Do ponto de vista administrativo, dá pra dizer que as mesmas características que estruturavam uma fábrica, passam a estruturar a escola, gerando uma enorme burocratização do processo educacional, amarrando abusivamente a oportunidade de criação e de transformação do ser, gerando uma sociedade de mentalidade técnica e produtivista.


Do meio para o final do regime militar, fortalecem-se outras tendências pedagógicas, voltadas para um ensino “democrático”, sendo as chamadas tendências crítico-reprodutivistas as mais cotadas no momento. Chama-se de tendências críticas porque as teorias que elas integram postulam não ser possível compreender a educação senão pelos seus condicionantes sociais; empenham-se em explicar a problemática educacional, remetendo-a sempre a seus determinantes objetivos; e é reprodutivista porque suas análises chegam invariavelmente à conclusão de que a função básica da educação é reproduzir e manter as condições sociais vigentes básicas. Aqui encontramos o ponto central de nossa critica à escolarização: em nossa opinião, a educação poderia alertar, e, fundamentalmente, transformar nossa deplorável condição social, em vez de simplesmente formá-la, reproduzi-la e mantê-la nas mesmas condições – característica da grande maioria das escolas no Brasil hoje. 


Na sequência surgem outras tendências mais radicais, que vão, a partir dos anos 1980 e 1990, transformar de fato algumas práticas educacionais, alcançando uma práxis pontual em determinadas localizações do Brasil. São elas: as tendências crítica dos conteúdos e as histórico-críticas. É, contudo, graças ao fim do regime ditatorial, que essas tendências começam a se materializar. A tendência crítica dos conteúdos fundamentalmente critica e tenta transformar uma educação conteudista, fundamentando-se na democratização do ensino e na escolarização pública gratuita. Já a tendência histórico-crítica está baseada na dialética materialista histórica marxista, que fundamenta a necessidade da função social da escola se pautar na prática social, ou seja: a educação escolar deveria partir da prática social para a prática educacional, e não o contrário. Algumas escolas então passam a se organizar em função dessas novas tendências, e reivindicam para si – algumas com razão, outras não –, um status de escola democrática, outras um status de escolas “libertárias” – sem razão, pois as escolas libertárias se referem a tendências surgidas nos porões dos movimentos anarquistas que, por si só, seria um movimento político que, na prática, acabaria por negar a escolarização, e não sistematizar um esquema escolar.


Contudo, mesmo com essas novas tendências como herança recente, a prática geral educacional escolar na atualidade, permanecem ainda extremamente fundamentada nos princípios surgidos no regime militar, acoplando-se a esses princípios, fundamentações democráticas, como por exemplo, a partir da nova legislação dos Parâmetros Curriculares Nacionais – ainda atuais –, a inserção dos chamados Temas Transversais. Nessa perspectiva, o ensino dos dois primeiros ciclos básicos (1º e 2º anos, 3º e 4º anos, respectivamente) deveria conter, como base, irremediavelmente, temas como ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual, e pluralidade cultural, paralelamente ao ensino de português, matemática, ciências, artes e educação física. Ou seja: uma tentativa de atribuir ao racionalismo educacional herdado e construído culturalmente no Brasil, alguns princípios mais humanos, por meio da atenção à subjetividade dos sujeitos no processo educativo, embora na prática, isso raramente aconteça.


Mas o fato das escolas não terem mudado sua estrutura básica (física e profissional), elas não conseguem manter por muito tempo essa “educação”, pautada nesses tais temas transversais. Por meados e fim dos anos 1990, muitas escolas que optaram pela proposta de abordar tais temas como temas principais, faliram; ou falharam na tentativa de partir para uma transformação real na educação de suas crianças. Faliram (ou se adequaram ao modelo padrão do mercado educativo atual) porque o sistema econômico de financiamento da educação (público ou privado) ainda exige praticamente as mesmas adesões político-filosóficas que à época dos anos 1970. Logo, essas escolas fecham, ou viram grandes empresas propedêuticas de acesso ao ensino de nível superior (pré-vestibulares). Nessa dinâmica, as crianças dessas instituições passam a sofrer no limbo que essas escolas se encontram, pois a grande maioria dessas escolas não consegue manter essa fusão, e acabam se adaptando melhor ao grande sistema já engendrado. Quando não o fazem, sucumbem aos poucos. 


Porém, dos anos 2000 pra cá, tem havido certo aumento no número de escolas que se propõem a transformações reais do seu funcionamento. Aos poucos, parece que muita gente vem sentido que uma educação pautada apenas nos princípios racionalistas e de eficiência produtivista não tem (trans)formado adultos mais humanos e mais éticos que outrora. Nesse sentido, muita gente tem se mobilizado para tentar mudar essa realidade, tentando não seguir qualquer caminho já proposto pedagogicamente, e levando sua instituição a preceitos e práticas distintas do que foi proposto até aqui – fundamentalmente, mudando toda uma estrutura. 


É nessa esteira que vamos seguindo na esperança de um dia poder ver transformações reais que, em meu ver, só serão possíveis em larga escala quando saírem do veio institucional legal, e indiscutivelmente passar por uma transformação tão radical, mais tão radical, a ponto de se desmanchar o ideal e a estrutura escolar, em função de outros ideais e estruturas. Sabendo que não é lutando contra o velho, mas sim construindo o novo, que conseguimos nossas transformações, acreditamos que, talvez, a própria ideia de desconstruir a escola, para poder (re)construir outra coisa (quiçá uma “escola” enquanto organização social voluntária), seja a grande transformação necessária para o século XXI – e para o tratamento mais humano das crianças na nossa era.


PS. Esse texto constitui uma síntese, a partir da leitura da obra de Demerval Saviani, intitulada História das Ideias Pedagógicas no Brasil (2007). Embora saibamos que esse livro não analisa profundamente as práticas pedagógicas e educativas no Brasil, mas sim a legislação e as ideias que surgem nos projetos políticos e educacionais a partir de uma perspectiva histórica político-econômica, ele nos ajuda a pensar como essa prática poderia ter sido conduzida, e como de fato pode vir sendo conduzida nos dias de hoje, a partir de um exercício de imaginação estruturado a partir de uma análise histórico-crítica (própria do Saviani). Contudo, ainda entendo esse livro como uma percepção histórica generalista e convencional, cronológica e linear. Por isso tentei, nesse texto, focar uma ideia específica, a saber, a questão da educação escolar com relação às crianças, deixando propositadamente de lado questões mais voltadas a outras etapas do ensino (como a dos adolescentes, das universidades, e práticas docentes específicas de casos específicos).