domingo, 20 de julho de 2025

CELEBRAÇÕES, ESPETACULARIZAÇÃO, TORNOZELEIRAS E PRISÕES: UM PONTO DE VISTA PERIFÉRICO


Celebrar é importante. Fé na festa e rebelde alegria sempre foram os movimentos de resistência mais invencíveis da cultura popular ascendente. Vamos brindar à justiça e à responsabilização dos assassinatos e fascismos do governo anterior e olhar pra essa responsabilização como uma vitória, sim. É importante. 


Mas preciso confessar que, não sei se por estar ansioso ou depressivo ou psicótico ou desnutrido (ou os quatro), venho sentindo uma aura um tanto estranha nesse movimento todo. Não sei explicar bem, mas vou tentar.


Tenho sentindo uma sensação muito estranha em ver essa cobertura midiática toda em torno do bostonaro. Isso me deixa inquieto: uma grande cena espetacularizada, sem qualquer análise mais complexa sobre a situação. Na verdade, tou angustiado com isso, não porque acho que bolsonaro não deva ser preso ou responsabilizado pelos crimes que cometeu e ainda comete, muito menos ache que ele não deva ser punido pelo que fez. Deve, Óbvio que deve. Ainda mais fazendo parte do grupo político fascista e covarde que faz, com uma família escrota completamente articulada à milícia política. 


Mas realmente estou sentindo esse movimento espetacularizado todo (da tornozeleira, da prisão, de comemorar isso como se fosse uma grande vitória) como um grande jogo de narrativas, que tá escondendo algo por trás. Não sei. Mas é uma intuição. Mas espero estar errado. Mas vamos lá. 


Lembro do analfabeto pobre que já se sentiu completamente conectado com Lula por ele ter sido eleito presidente sendo da classe trabalhadora e analfabeto (como diziam). O povo se sentiu vingado quando Lula ganhou a eleição pela primeira vez. Lembro disso no corpo. “Lá está”, diziam, “um pobre, analfabeto, nordestino, trabalhador, nos representando na presidência”. Isso tinha muita força, porque o povo pobre se reconhecia em Lula, se sentia representado. 


Lembro também dos relatos de uma sala de aula da EJA cheia de jovens periféricos com tornozeleiras piscando, como se a sala de aula fosse uma grande árvore de natal. Esse povo possivelmente tá olhando como pro bolsonaro agora? 


Hoje, quando vejo e sinto o pobre analfabeto periférico se reconhecendo no bolsonaro (seja pela hipocrisia moralista ou por usar tornozeleira), me dá uma angústia. Mas eu entendo. É um sentimento complexo. Que tá aqui pulsando a partir de quem nasceu e cresceu na favela e sabe bem como esses sentimentos funcionam. No mínimo, duas coisas envoltas neles: sentimento de pertença e de sobrevivência. 


A favela não segue a lógica da classe média, de (ter tempo para) pensar, sentir e refletir sobre a vida, sobre a sociedade, sobre a política. A favela tem muitas complexidades. Muitas particularidades. Muitas demandas diferentes articuladas, imbricadas. A favela precisa resolver as coisas no agora, porque a comida precisa estar na mesa agora e as contas precisam estar pagas no fim de mês. Não há espaço para análises a médio e longo prazo. Aí você pode dizer “sim, a classe média também”, mas a questão política complexa nesse panorama é que, para quem não tem tempo e condições de possibilidade e oportunidade de refletir sobre a política, tanto a política de Lula quanto a de bolsonaro têm práticas que são criticadas e/ou aplaudidas. E é isso que acontece na periferia. Repito: chama-se lei da sobrevivência a curto prazo. 


Não se trata de um debate raso, entre direita e esquerda. A periferia é muito mais do que isso. As complexidades são outras. E a esquerda perdeu o acesso a essa complexidade faz tempo. 


Tenho observado que esses dias têm sido angustiantes por aqui pelo meu entorno físico, onde moro, pra maioria das pessoas que vi na rua, na fila do mercado, os motoristas e motoqueiros que me transportaram; praticamente todos da periferia, com uma cara de insatisfação com essa ideia toda de tornozeleira. Muitos da periferia ainda olham pra tudo isso que tá acontecendo como um "grande jogo de poder entre ladrões" ou com desdém, "porque do mesmo jeito que prenderam lula e soltaram, ele [bolsonaro] também vai ser solto", escutei nas conversas de rua por aqui. Ou pior: muitos ainda acreditam em bolsonaro e afirmam que ele tá mesmo sendo perseguido. 


Aí fico com meu juízo pendendo aqui: como reverter estragos tão complexos? Tá havendo um grande confronto de narrativas aqui e esse confronto tá deixando as pessoas mal informadas mais perdidas ainda, porque não tem espaço pra uma compreensão mais complexa das questões políticas e sociais envolvidas nessa situação toda. 


Ouvindo as pessoas por aqui nesses dias, na rua, passando nos caminhos, na fila do mercado, nas conversas dos vizinhos.. estão em conflito. Não porque prenderam bolsonaro (talvez alguns, mas nem todos), ou porque soltaram Lula. Mas sinto que paira no ar um grande senso de “quem manda na política é a elite, seja ela progressista ou fascista”. E o pobre sempre como massa de manobra. Pra mais ou pra menos, mas sempre. 


As mass media conseguiram fazer uma lavagem cerebral tão bem feita na sociedade, mas tão bem feita (me refiro a como trataram e usaram os temas da lava-jato e do mensalão), que todo mundo acreditou que Lula realmente deveria ser preso mesmo. E aí, prenderam Lula. Quem era de esquerda, se conteve; quem era de direita, comemorou; e quem era só lulista e acreditou no jogo da mídia, se virou contra ele e contra o PT. Lembro que na prisão de Lula, muita gente pobre também comemorou, porque viram nessa atitude uma “justiça frente aos podres políticos”, obviamente uma grande ilusão construída por anos a fio de lavagem cerebral pela mass media. Aí soltaram Lula. Comemoramos! E agora ele é presidente. 


Aí, tou tentando lembrar aqui: a globo se desculpou pela cena que fez, incansavelmente, dia após dia, no JN e em todas as plataformas possíveis, sobre a lava-jato ou sobre o mensalão, com objetivo de criminalizar Lula e o PT? Ou pior: adiantaria pedir desculpas? Assim como se desculparam por apoiar a Ditadura de 64-85 ou a eleição de Collor? 


Tenho sentido uma aura parecida acontecendo agora com essa cena toda com o bolsonaro. Tou vendo aqui: muitas pessoas estão céticas, incrédulas. As pessoas não querem acreditar que estão sendo enganadas. A prisão de Lula foi real, porque a lavagem cerebral foi eficiente. Soltaram Lula: um grande jogo político. E agora prenderam bolsonaro: e aí escuto na periferia “não é verdade o que tão falando de bolsonaro”. É óbvio que as pessoas vão achar isso. Presta atenção na dinâmica social e em tudo o que aconteceu na dinamica mídia-política-sociedade desde a primeira eleição de Lula. Ninguém quer se sentir marionete da mídia, e escolheram um evento para acreditar: acreditar na culpa de Lula e na inocência de bostonaro. E a responsabilidade é, em grandíssima parte, das mass media. E isso, pra mim, é mais preocupante do que celebrativo. 


Pra maioria das pessoas que escuto fora da minha bolha (minha bolha que vota na esquerda junto comigo), “bostonaro não é ladrão” (pasmem pelo conteúdo da palavra, como se a questão fosse só ser ou não “ladrão” - em contraponto com “Lula ladrão”), que bolsonaro “não merece isso que tão fazendo com ele”, que “ele tá sendo perseguido sim”. A moral hipócrita de “deus, família e liberdade” está mais do que ativada na ética social convencional e conservadora de grande parte da população, porque é o discurso conhecido, que agrega sentimento de pertencimento à uma convenção cristianizada e convencionada. Infelizmente bostonaro soube fazer bem esse papel de bom samaritano, sustentando o discurso dos bons costumes e do cidadão de bem, apoiado no ceticismo do povo sobre a mídia e sobre a inocência de Lula. 


Sinceramente: peço a tudo quanto é força, que eu esteja muito errado.. ou só noiado mesmo.. mas, sabe qual é meu maior receio? É transformarem bostonaro numa espécie de mártir. De qualquer tipo. Mesmo um mártir cagão. Mas um mártir. Contra “quantos mártires de esquerda popular”, onde o povo possa repousar suas angústias e celebrar suas esperanças? A esquerda popular, radical, não tem mais uma pessoa em posição política que abranja à classe periférica como um todo, que é a maioria do eleitorado. A esquerda não faz mais trabalho de base. A esquerda não tem mais mártires. E somos tantos intelectuais na esquerda, e são tantas as teses, mas nenhuma estratégia real aplicável na prática (com raríssimas exceções, como os movimentos culturais nas periferias, por exemplo, como a capoeira ou a cultura popular, contra a disseminação do neopentecostalismo em cada esquina). 


Sinceramente: estou preocupado. Não pelo encaminhamento da prisão do bostonaro ou pela cena em cima de uma tornozeleira. Estou intrigado porque, pra mim, primeiro: nosso sistema prisional é uma grande falácia burguesa que não resolve absolutamente nada do ponto de vista de uma reconstrução social; e, segundo: porque o bostonaro não vai ser mesmo preso como muitos gostariam que fosse. Vai vendo. Ele vai no máximo ficar numa prisão domiciliar, recebendo todas as regalias possíveis, que nem Collor ficou. E acredito que não vai ficar nem metade do tempo que deveria ficar. 


Mas enfim, talvez eu me preocupe demais mesmo. Espero que seja só nóia mesmo, de quem já foi da favela e sabe como é lá dentro e que hoje não é mais. Ou nóia de quem hoje vê espectros da política pra além da classe média hipócrita que também só vê o seu umbigo (seja da direita ou da esquerda). 


De todos os modos, ainda acredito que em 2026 a luta é só uma: reeleger Lula ou quem ele indicar, porque infelizmente, não haverá ninguém de tamanha influencia que combata as forças do fascismo da extrema direta que terá toda a máquina informacional digital nas mãos. E mesmo sabendo que teremos uma guerra informacional e digital completamente vencida pela extrema direita (que é quem detém o capital nesse país) e sabendo que a esquerda abandonou a luta de base, ainda me resta acreditar que só vou conseguir celebrar mesmo, brindar de verdade, quando a extrema direita perder a eleição de 2026 e não se aplicar, em seguida, um golpe de estado, e nossa democracia falha, esburacada e hipócrita, continuar em seu caminho de pedras. Aí a gente celebra e vai pensando no que fazer. Muita coisa pra dizer sobre isso, mas mais ainda a se fazer. Um congresso extremista direitista gigante pra desmontar. Muitas guerras intra-institucionais pra ganhar, fazendo nosso trabalho diário de formiguinha e se alimentando com a esmola da emancipação de 5 a 10% da população. 


Nesse caminho, desejo força pra gente. E alegria nas brechas. 

Comemorar, sim, como modo de resistência e de olhos abertos.



 

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