quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A IMAGEM E O ATO DE VER


Antes de sistematizarmos uma linguagem e de articulá-la oralmente, o bicho gente já enxergava, já desenhava, inscrevendo em seu espaço e tempo, grafismos figurativos que significavam e comunicavam muito. A imagem ocupa lugar de destaque desde as ilustrações simbólicas gravadas nas paredes de pedra das cavernas onde viviam nossos antepassados, até o cotidiano imagético da mídia, da publicidade e propaganda, da TV e da internet. Enquanto ocupa esse lugar, a imagem influencia, induz e organiza sensações e opiniões dos seres que dela partilham cotidianamente em suas relações. 

A comunicação visual é física, concreta, atributos estes que proporcionam a ela um considerável potencial criador e comunicador. A linguagem iconográfica, tal como a linguagem visual, é portadora de múltiplas mensagens. Da mesma forma, tal como uma linguagem iconológica1, sistematiza uma combinação de sentidos gerando símbolos que, ao vê-los, permeamo-nos por seus significados, assim como no ato de ouvir algo que fora dito. 

Muitas vezes, para reconhecer e interpretar as imagens visuais, importamos o discurso verbal. Logo, a separação dessas duas dimensões – visual e verbal – não é tão radical, porque geralmente, quando lemos uma imagem, usamos palavras para expressar o que sentimos. A linguagem verbal necessita, na maioria das vezes, ser esmiuçada, refletida, interpretada, analisada, para ser compreendida. O mesmo não acontece de forma tão consciente com a linguagem visual, com os sentidos que ela gera. Como somos imagem desde a origem – nascemos e já vemos o mundo, o interpretamos a nossa maneira, baseados na experiência que carregamos –, estamos acostumados com ela. Ela tende a se naturalizar e a naturalizar as experiências e objetos sociais que se interpõem no horizonte dos sujeitos. Desse modo, até parece que não precisamos esmiuçá-la, interpretá-la, analisá-la ou refletir sobre nosso entendimento ao vê-la. Mas vários estudos sobre seu uso e/ou sua utilização, em diversas pesquisas e para diversos fins, mostra o contrário: quando mais refletimos e analisamos as imagens, para além do uso figurativo, contemplativo ou complementar que elas proporcionam, mais elas nos adentram em possibilidades de ressignificação à construção histórica.

Essa ideia geral sobre nossa percepção imagética oferece poder à imagem para sobrepujar-nos. Assim como a linguagem verbal pode intencionar, construir e/ou influenciar opiniões, credos, ideias, pensamentos, etc., a linguagem visual o faz o tempo todo. A linguagem, seja imagética ou verbal, pode remodelar certos paradigmas, e o faz de forma muito acirrada quando se articula a outras linguagens.

A integração entre linguagem verbal e não verbal ocorre na leitura de imagens. Essa leitura se inicia com um simples olhar e pode chegar até a sua produção, resultando em modos de comunicação, que envolvem diversos processos cognitivos e afetivos. Frequentemente a mensagem linguística está ligada à imagem. A letra em si é uma imagem, organizada em padrões simbólicos que, sistematizados em conjunto, comunicam as mais complexas mensagens. As imagens que não são letras utilizam outro modo de combinação, que pode ou não se intensificar, dependendo da relação que o sujeito constrói com elas.

É impossível estarmos longe e/ou fora das imagens, já que estamos o tempo todo sendo influenciados por elas; já que se somos também imagem, assim que o outro nos vê. Entretanto, geralmente não nos atentamos ao texto imagético com a mesma importância que ao texto escrito.

O ato de ver é constante, mas muitas vezes a imagem permanece invisível por parte comum do todo, por estar tão presente. Estamos constantemente vendo, independentemente de estarmos lendo. O ato de ver precede e é simultâneo à leitura. O ato de ler uma imagem é diferente do ato de ler uma palavra. Para entendermos um texto verbal, precisamos aprender a combinar certos signos em grupos para indiciarmos símbolos que, em conjunto, geram mensagens. A imagem aparentemente se apresenta pronta. Todavia, apesar da imagem ser apresentada já construída, assim como o texto verbal, o texto imagético também é reconstruído na mente do sujeito, em função de seus meios de bordo. Para uma perspectiva inadvertida, ler uma imagem, em tese, seria o mesmo que vê-la. Mas ler, mais do que apenas ver, significa sentir, interpretar, entender, e refletir sobre o que se vê e se entende da mensagem imagética. E fundamentalmente, quais as intenções daquelas mensagens ali presentes.

Alguns artistas discordam em parte desse argumento, pois subentendem que, ao ver, já sentimos algo, e esse sentido já é uma leitura. De fato, concordamos com essa posição, embora encaremos aqui o termo leitura como algo mais complexo, no sentido de Aumont (1999 e 2008), Dubois (1993 e 2008), Samain (1998 e 2010), Baxandall (1991), Kossoy (1998 e 2001), Fatorelli (1998), Bosi (1988), Kellner (1995), entre outros, que contestam essa simplicidade da leitura da imagem e predizem que a mensagem que vemos na imagem, muitas vezes, é mais complexa do que sentimos e entendemos a priori. Esses teóricos colocam que, às vezes, para entendermos uma mensagem imagética, precisamos interpretar nuanças dessa imagem que não estão tão claras a nossa percepção sensorial básica, primeira.

Logo, interpretar é uma atribuição da leitura, num nível diferente do simples olhar. Se olharmos uma palavra desconhecida para nós – por exemplo: NAAFATSI – percebemos que é possível ver a imagem da palavra. Mas, a princípio, não conseguimos entender sua mensagem de palavra2. Esse anagrama demonstra a diferença básica entre ver-sentir e ler-interpretar-sentir. Ao entender que o anagrama se trata de uma palavra de língua portuguesa, brasileira, partimos para possíveis recombinações organizacionais e, enfim, ao reescrevê-la algumas vezes, podemos lê-la como FANTASIA. Quando a vemos, sentimos algo. Quando a lemos, interpretamos, refletimos sobre ela, e sentimos diferente3.

Dessa forma, acreditamos que para entendermos a mensagem da imagem – o seu significado em si e seu significado contextual4 – precisamos entender sua contextura (FOUCAULT, 2003), suas condições de produção, e sua intenção. Assim, como percebemos a imagem ao vê-la, podemos entendê-la ao lê-la. Nesse sentido, podemos (re)entendê-la ao escrevê-la, ao desenhá-la, ao fotografá-la, ao ilustrá-la, pois todos esses atos de produção de imagem trazem agregados intenções, objetivos e mensagens primárias, intermediárias e complexas, sendo que estas últimas nem sempre são percebidas por nós quando apenas vemos as imagens.

Uma imagem – seja pintura, fotografia, palavra, etc. – sempre representa algo. Essa representação condiz uma realidade e uma não realidade imediatas, que podem ou não carregar mensagens específicas que conduzem à interpretação para uma ou outra direção. Cada linguagem imagética específica possui uma lógica exclusiva para estudo e análise de seus atributos e sentidos. O ato de produzir a imagem nos proporciona outro potencial interpretativo porque participamos da lógica de sua intencionalidade. Essa lógica geralmente explica o processo de significação das funções comunicativas da imagem. 

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NOTAS 
1. Os conceitos de iconografia (grafia, escrita - de ícones) e iconologia (logia, estudo - dos ícones) serão explicados e aprofundados no próximo post. 
2. É possível entender o que nós queremos, enquanto autores, ao colocar essa palavra nesse contexto. Mas não é possível entender o sentido de palavra em si.
3. Paulo Freire não toma o termo “admirar” no sentido de ficar absorto ou atônito diante de algo, nem de se entusiasmar e/ou se maravilhar. Para ele, “ad-mirar”, com raízes latinas, é um termo composto pela preposição ad que indica direção, e o verbo mirar, que significa ver. Ad-mirar é olhar em direção de, direcionar o olhar para o objeto de conhecimento como um objeto em si mesmo. E só a partir da reflexão sobre o objeto é que podemos entender sua mensagem e decidir se vale compactuar com ela (ESCOBAR & ALBERTON cf. STRECK; REDIN & ZITKOSKI 2010, pp. 24-25).
4. Significante e significado.
5. Modelo de quarto vazio ou caixa oca, onde a partir de um único orifício em uma das faces, fazia com que a imagem de fora fosse transferida para dentro da caixa, na face posterior à furada.
6. Entendemos por suporte, o material diverso (papiro, pergaminho, papel, pedra, vinil, disco magnético, película fotográfica, etc.) capaz de receber e conservar a inscrição de um texto. No contexto das artes, da produção artística, diz-se qualquer estrutura física que serve de base para a produção do trabalho artístico.

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