quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

AUTOBIOGRAFIA COMO ABORDAGEM METODOLÓGICA





Pensar em formas de autobiografia é pensar em formas de entendimento e construção de identidade, na medida em que pensamos os contextos e os personagens que estão em volta de nós. Construir uma tessitura histórica a partir da fala de nós mesmos nos incita a refletir sobre o que somos nesse mundo. Trata-se de um trabalho extremamente complexo e emocionalmente desafiador, porque remexemos em nossos próprios baús de histórias pessoais, e acabamos todos sendo “obrigados” a repensar sobre nossa própria trajetória e, fundamentalmente, sobre quem somos nós e o que estamos fazendo com nossas vidas neste momento. Mas refletir sobre o lugar que ocupamos no mundo não é tarefa fácil. Acreditamos que por isso o trabalho com autobiografia em ambientes de aula de séries com estudantes mais velhos seja um caminho possível. Uma reconstrução constante, como é constante o revisitar de nós mesmos durante as emaranhadas reflexões terapêuticas.

Um dos recortes mais conhecidos e encontrados na relação da biografia com a História é biografia como fonte histórica. Essa relação, entre biografia e História, sempre foi mediano, pois se trata de um gênero que viveu e vive em uma gangorra de aceitação e rejeição. Contudo, nunca deixou de ser produzido. A veracidade da narrativa biográfica sempre levou a desconfiança por parte da História, além desta se ater, geralmente, a acontecimentos coletivos, enquanto a biografia se destina geralmente a estudos individualizantes. Por tanto a biografia é considerada para muitos como “um domínio menor do conhecimento histórico, visto não proporcionar a quantificação e a generalização”, característica da história enquanto ciência (ALCÂNTARA, 2013, s/n). Por outro lado, alguns historiadores, como Michel Vovelle (1989), defende o gênero biográfico, acreditando que este valoriza o qualitativo e o individual da História, tão fundamental quanto o quantitativo e o coletivo. Outros historiadores, como Hayden White (1955) e Malatian (2008), chegam a afirmar que seria a biografia o principal gênero da construção Historiográfica, “pois esta é elaborada pelo povo, por pessoas”. Já para Rémy Handourtzel (2014), ao trabalhar com a biografia, o historiador terá que compreender as questões estruturais e conjunturais, e irá deslizar entre a micro e macro História, sendo este o maior benefício para a análise biográfica. Sem entrar em extremismos, entre ser o “melhor” gênero historiográfico ou o “menos” confiável, é de praxe saber que biografar sempre foi algo extremamente caro aos historiadores.

Noutra esfera existencial, a biografia aparece como um recurso fantástico, na pureza etimológica mesmo do termo fantástico: de fantasia, mito. Biografias são histórias pessoais, das ações de pessoas, de seus eus, de suas personalidades, de suas vaidades, defeitos e qualidades. As biografias sempre foram e são muito utilizadas na perspectiva da construção de um imaginário coletivo sobre alguém sendo um ser. Mas esquece-se de lembrar que nunca tudo sobre um mesmo ser poderá será contado em uma biografia, ou mesmo que tudo o que fora contado lá é fato ou verdade. Além do que, para as biografias, existem limites naturais, por assim dizer, que nos fazem ser incompletos ou imaginativos, como a memória, por exemplo. Sabe-se que memória não recorda tudo. Pelo contrário; recorda pouco, o mesmo pouco do que de nós é geralmente contado. Para que essa memória se torne algo interessante ao coletivo, recorre-se à imaginação, que é a ação da imagem sobre o que um ser fez sendo si mesmo com outros durante certo tempo, num certo contexto1. Logo, memória e imaginação estão sempre juntas, em diferentes medidas. Eis a fundação dos mitos biográficos. E mesmo por isso deixam de ser valiosas fontes históricas para muitos historiadores.

A atividade da construção da autobiografia em ambiente de aula pode nos fazer questionar sobre o método de ensino e de construção da História. Eis o ensaio (coletivo) de um problema (coletivo) sobre a epistemologia do método. Entendemos que conhecimento é transformação, e a transformação substancial de um método se faz a partir de reflexões constantes sobre sua ação. Trabalhar com a história individual de cada sujeito nos redireciona a uma epistemologia do historiar, a uma epistemologia do educar, a partir da percepção de que a representação comum acerca do que seria a consciência histórica conduz à construção de uma espécie de “teoria da representação social consciente2”. Essa reflexão pessoal, individual, fundada numa realidade coletiva a partir do individual – social a partir do pessoal – reinterpreta a possibilidade de educar historicamente, num movimento de ressignificação (significação consciente para ressignificação inconsciente).

No que tange à possibilidade de uma representação e de uma referência identitária do sujeito para com a História ressignificada, a partir de suas individualidades e particularidades coletivas, percebemos uma maneira de reinterpretar uma interpretação apriorística: um caminho possível para uma libertação da construção do eu no mundo. Nesse sentido, a atividade da construção da autobiografia em ambiente de aula nos proporciona um caminho para revisão de estruturas interpretativas obsoletas, numa busca de liberdade que se sedimentou na negação derivada da opressão de si pelo mundo. Eis a primeira consideração intempestiva dessa problematização: as primeiras opressões que muitas vezes atingem-nos, pesquisadores, docentes e discente, estão/partem de nós mesmos, de nossas histórias de vida, que são tão importantes para que entendam a si mesmos e ao mundo, mas que são tão facilmente sucumbidas por outras, oficiais, curriculares, programáticas.

A experiência de trabalhar com as memórias de nós mesmos, não nos faz entender o presente através do passado, como bem metaforizava Gaston Bachelard, ao dizer que o conhecimento acerca do presente nos faz entender o passado, e não o contrário. Walter Benjamin certa vez nos disse algo parecido, comparando uma fotografia familiar com um brinquedo. Benjamin também se referia ao tempo: “o passado é consequência do presente, e não o contrário”, dizia.

Ora, tais metáforas nos fazem pensar muito sobre o trabalho mnemônico, em função de um historiar a nós mesmos. Temos ainda tanta história para ser contada por aí, tantas fontes para serem historiadas. Eis a segunda consideração coletiva dos professores cursistas em nossa primeira aula: o passado é um presente. É a partir do que somos e de como estamos hoje que olhamos para ontem, e então descobrimos, a partir de nossas intencionalidades, o que queremos descobrir, e encobrimos o que não nos interessa. Eis o jogo de acende e apaga, por sobrevivência. Por isso as metáforas são construídas nessa ordem. Os ontens se refazem entre nossos hojes, e nos oferecem sempre outras formas de sermos no mundo. Taí a importância da história.

Laura Gutman (2013) nos explicou que, apesar das memórias serem eternas companheiras dos trajetos de nossas identidades, nossa persona se funda enquanto ainda somos plenos superegos, porque é na fase da primeira infância que se atesta a formação basilar de nossa personalidade. É quando somos crianças, sob a reponsabilidade de quem conta nossa história para nós, de quem está perto de nós, de seus sentimentos, contatos, ações, atitudes, que formamos grande parte do que seremos para os outros no mundo, fundando nossas marcas, marcando nosso caráter no chão da verdade. Dizer sobre o que se faz no mundo é tarefa complexa, embora nos arrisquemos a fazê-lo.

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NOTAS

1. [...] “estar a par do que representa e de como se apresenta a imagem de nós mesmos, que nos molda, é entender e participar do fenômeno histórico enquanto acontecimento. Uma forma de situar o educando (e seu conhecimento) numa relação contextual, dialógica, reflexiva e autônoma [...]” (SOARES, 1998, p.58 Cf. SOUZA VIANA, 2013).


2. Aquisição e reflexão pública do conhecimento de que existe a possibilidade de se reconstruir seu próprio passado (GUTMAN, 2013). O “ensino” de História, convertido em “construção e reflexão das próprias histórias” funcionaria em função de um núcleo de pesquisa da História Social, que transita pelo método e pelo tempo da História do Presente, refundamentando uma epistemologia do método docente (SANTOS – epistemologia da prática, In: Epistemologias do Sul, 2011). Em tese, seria a sistematização de uma prática social consciente do que se deve fazer a partir de uma intencionalidade específica, a fim de construir uma reconciliação entre passado e presente coletivos a partir das individualidades do ser. A conexão entre consciência individual e consciência social sobre o fazer algo é comum a todos, dependendo dos objetivos. Toda a variabilidade da forma de ver um fato na história se apresenta de formas muito diferentes, dependendo da intencionalidade e fundamentalmente de cada modo de fazer. Logo, o método é o ponto problemático de interseção entre todas as formas de fazer histórias.

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