quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O ATO FOTOGRÁFICO E A DESCONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA



De modo marcante, durante as décadas de 1970 e 1980, a análise da imagem fotográfica se valeu de grandes sistemas e teorias gerais que se sustentavam na ideia de uma essência da fotografia, referenciada pela natureza técnico ontológica do processo fotográfico, decorrente do modelo visual gerado pela câmara escura renascentista1 (BARTHES, 1980 e 1984; DUBOIS, 1994; BAZIN, 1983, FLUSSER, 1985; SCHAEFFER, 1990; COLLIER, 1973). 

Num primeiro momento, a fotografia significou a irrupção de novos modelos de percepção e novas formas de subjetividade. Posteriormente, uma acepção de estilos e práticas teve efeito a partir dela, ao dar lugar a relações espaciais e temporais diferenciadas que nos induzem a pensar a fotografia à solta de uma essência ontológica, refletindo em fotografias, numa pluralidade de agenciamentos espaciais, temporais e maquínicos, em vários estratos e/ou camadas que apresentam níveis diferenciados de complexidade (FATORELLI 1998).

No momento de sua origem, a fotografia se tornou um destes dispositivos técnicos pelos quais percebemos o mundo. Um tipo de estrutura transcendental que serve para pensar a comunicação em geral, de modo tão abrangente que reordenou as demais práticas visuais. Nesse sentido, a própria pintura, assim como outras formas de representação da imagem passaram a incorporar valores fotográficos, de modo positivo ou negativo, em referência a uma visualidade que a fotografia inaugurara (LÉVY, 1993).

Nesse momento inaugural, a fotografia significou a possibilidade de representação de um espaço e de um tempo quaisquer, em oposição à pose e à fixidez da imagem clássica. Ao longo das décadas, a própria fotografia viria a se modificar em decorrência da presença de outros tipos de imagem, como a imagem em movimento, apresentando deslocamentos como, por exemplo, aconteceu com o movimento futurista e cubista, no que significaram quanto à introdução de um efeito cinematográfico para as imagens estáticas (FATORELLI, 1998).

Ocorre que os meios não se superam uns aos outros, mas antes se recompõem, associam-se e se complementam, em vista de novas demandas. Então, em função da fotografia, não há, portanto, a era da TV ou do cinema, mas sim a era da fotografia televisiva e da fotografia cinematográfica e o surgimento de novas possibilidades de mídias, como os videoclipes e os filmes digitais. A sucessão desses suportes2 não se dá por simples substituição, mas antes, por complexificação e deslocamento de seus centros de gravidade, a exemplo da escrita e da informática, que se inseririam como modos fundamentais de gestão de conhecimentos. Nesses arranjos complexos, o lugar da fotografia não mais poderia ser somente definido com base no critério purista que originou a passagem artesanal fotográfica, as teses ontológicos, essencialistas de outrora (FATORELLI, 1998).

Uma vez no horizonte das imagens técnicas e das novas tecnologias de armazenamento, transporte e reprodução da imagem (BENJAMIN, 1987), não há porque pensar em pontos fixos iniciais e finais, em uma essência do meio que manteria a imagem fotográfica conectada para sempre ao objeto câmara escura e referente real. A realidade passou a ser relativa nesse contexto, e a recusa desse território fechado de interpretação para a imagem fotográfica foi condição para pensarmos essas imagens em suas múltiplas variáveis e redes de significações (BAXANDALL, 2005; LATOUR, 1994). 

A tese de que as imagens fotográficas são realizações das potencialidades inscritas somente no aparelho fotográfico encerram uma definição específica para a imagem fotográfica que é importante para delimitarmos seu significado ontológico essencialista, originário e definidor das transformações que este tipo de imagem trouxe. Mas hoje não é mais possível refletir acerca da imagem fotográfica somente em função desse pensamento, onde se encerra uma definição essencial para ela (SAMAIN, 1998; DUBOIS, 1994; FATORELLI, 1998). 

A discussão sobre a antecedência do aspecto técnico ou do aspecto natural do processo fotográfico testemunha a incompreensão desta natureza técnica da imagem. Logo, proporciona espaço para a formulação de um lugar de híbrido para a imagem, pertencente à natureza, ao coletivo, ao discurso e às condições de onde ele está se inserido (FOUCAULT, 1999). As teses essencialistas desconhecem essas medições, os lugares intermediários por onde circulam esses híbridos. Estas posições, voltadas a identificações singulares de um centro de valor ao processo fotográfico originado da câmara escura deixam escapar nuanças e modos contingentes pelos quais esses híbridos se insinuam (FATORELLI, 1998).

Em função da intencionalidade produtiva da imagem fotográfica, a mensagem fotográfica também se baseia em antilogismos essencialistas da teoria da fotografia, que permeia a constituição dessa imagem fotográfica em, no mínimo, dois planos: um denotativo, onde a mensagem fotográfica se apresenta análoga ao real. Em seguida, abrindo espaço para um plano conotativo, um segundo tipo de sentido à mensagem fotográfica propriamente dita, que se elabora nos níveis da produção fotográfica (escolha, tratamento técnico, enquadramento, paginação; intencionalidade como um todo), codificação análoga ao fotográfico. Embora as teses essencialistas não definam essa conotação à estrutura fotográfica, elas admitem que sua mensagem esteja presente no processo fotográfico (BARTHES, 1984), e esse processo gera uma imagem análoga à fotográfica por conter uma intencionalidade produtiva e/ou formativa, discursiva.

Essa relação discursiva é percebida nas várias formas de representação da imagem análoga à fotográfica, como a holografia, a estereoscopia, a cronofotografia, a cintilografia, a raiografia, a teloscopia, a fotografia do álbum de família, a fotografia espiritualista, a fotografia de denúncia, a fotografia experimental, etc. Desse modo, 

[...] pensar a fotografia em polaridades, assim como as teses essencialistas, é desconhecer o que significou a presença da imagem fotográfica no universo das imagens, seu lugar de híbrido, sua potência de amalgamar linguagem, natureza e cultura, de ser simultaneamente natural e investida, irredutivelmente situada no meio, no espaço discursivo (FATORELLI, 1998, p.88).

A preponderância do papel da História pode ser correlata ao reconhecimento dos híbridos (CHARTIER, 1990; REIS, 2006; RICOEUR, 2007), quanto pretende construir reconhecimento do que não fora narrado e oficializado, assim como o devir da vida é correlato à intencionalidade da trama discursiva, narrativa, cultural, estética, e também técnica, que envolve a produção imagética (BARROS, 2004; CERTEAU, 1994 e 2006), em especial a produção fotográfica (MEIRELLES, 1995; MAUAD, 2008), dada a sua dimensão inaugural de protótipos e técnicas de registro do entorno, seja esta qual for (FATORELLI, 1998; MARTINS, 2008). Em suma, os sentidos que abrangem a fotografia estão para a construção das narrativas e discursos da História, assim como a imagem e sua importância está para a constituição (também crítica) da sociedade hoje. Construir uma imagem fotográfica, em tese, significa também (des/re)construir nossa História única e trazer outras narrativas e discursos possíveis.

Entendemos a eficácia do discurso essencialista sobre a imagem, ao sustentar uma separação total entre natureza e cultura, de modo a fazer o cultural derivar do natural, pois concordamos que, além de discursivas, as imagens possuem outras dimensões específicas, como as estéticas, as políticas e as emotivas, que podem ser estudadas separadamente, dependendo do objetivo do estudo. As teses essencialistas são fortes nas análises dessas dimensões em separado, mas a função da percepção da imagem análoga à fotográfica enquanto possibilitadora do transporte da mensagem fotográfica de forma denotativa e conotativa, híbrida, intencional, nos tece muitos outros fios de entendimento contextual aos usos dessas imagens (KRAUSS, 1985).

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NOTAS

1. Entendemos por suporte, o material diverso (papiro, pergaminho, papel, pedra, vinil, disco magnético, película fotográfica, etc.) capaz de receber e conservar a inscrição de um texto. No contexto das artes, da produção artística, diz-se qualquer estrutura física que serve de base para a produção do trabalho artístico.

Foto de @felipecorreiaaa

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